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Um lago, um batiscafo e muitas histórias



Como a vida começou na Terra? Existe vida em outros planetas? Perguntas como essas alimentam as investigações em torno de Vostok, o maior lago subglacial da Terra. Localizado na Antártida, sob uma camada de gelo de quase 4 km de espessura, o sistema aquático constituiria o último território não explorado do planeta. Descoberto por cientistas russos em 1957, o lago teria permanecido isolado do resto do mundo por possíveis 30 milhões de anos, podendo abrigar formas de vida pré-históricas ou mesmo desconhecidas em seu interior.

As perguntas em torno desse território inexplorado são inúmeras, e as possibilidades de penetrá-lo permanecem incertas. A questão é que, para coletar uma amostra do lago, o que permitiria aos cientistas estudar sua composição e desvendar como era o planeta antes da era do gelo e como a vida evoluiu desde então, é necessário muito cuidado para não causar nenhum tipo de dano, impacto ou contaminação em suas águas – aspectos que os investigadores ainda buscam solucionar. 

Pois é essa paisagem inacessível, espécie de cápsula do tempo, que inspira o mais recente projeto de Letícia Ramos. Habituada a construir aparatos fotográficos voltados à captação – ou antes, à investigação e recriação – de determinadas paisagens, em trabalhos como Estação radiobase fotográfica -ERBF (2007) e Bitácora (2011) a artista desenvolveu câmeras orientadas ao registro de lugares específicos. No primeiro caso, uma pinhole cinematográfica com 24 perfurações produziu tomadas panorâmicas da cidade de São Paulo, mesclando diferentes pontos de vista de uma mesma paisagem. Já no segundo, uma câmera baseada na tecnologia polaroid e na estrutura dos primeiros submarinos de madeira reinventou a paisagem da região ártica de Svalbard, tomando como referência a Escala de Beaufort e suas descrições do efeito dos ventos sobre a terra e o mar. 

Dessa vez, a busca por uma certa paisagem – ou por uma dada versão dessa paisagem, o território subglacial da Antártida – também orientou o Projeto Vostok (2012-2013), que resultará em um disco, um livro e um filme. Mas ao invés de construir uma câmera para captar as imagens que de algum modo antevia, a artista desenvolveu um conjunto de cenários composto de maquetes subaquáticas que dão lugar a uma ficção em torno do lago. São fragmentos desse ambiente cenográfico, fotografias que se apresentam tão misteriosas e intrigantes quanto o território ao qual fazem referência e o suposto batiscafo destinado a explorá-lo, que Letícia Ramos apresenta na Revista Lugares. 

Não fossem as legendas, talvez tomássemos as imagens como composições abstratas. São suas breves descrições que, tal qual a empreitada científica na origem do trabalho, nos ajudam a desvelar o que vemos. Ou a compartilhar com a artista esses exercícios de exploração e descoberta de um lugar – que, como nos lembram suas imagens, implicam sempre a reinvenção desse lugar. 

E aí está um dado importante da poética de Letícia. Suas paisagens não são apenas fruto de uma aventura investigativa – pesquisas envolvendo máquinários, teorias científicas, exploradores, perguntas, expedições. Elas constituem-se a partir desse percurso e das histórias que o compõem. Têm em seu processo investigativo – e nos contextos que o situam – um elemento fundamental na produção de sentido. 

Não se trata de contar histórias, mas de remeter, a todo tempo, a um universo de histórias. Ou antes, de indagações. É nesse embate entre aquilo que se quer saber e o que se quer imaginar, entre aquilo que se quer conhecer e o que se quer inventar, que se localizam as paisagens da artista.

* Texto publicado na Revista Lugares da Fundação Iberê Camargo, em junho de 2013.
** VOSTOK, fragmentos de cenário, Submersão, 2013.

Entre o turismo e a vertigem



Machu Picchu, Torre Eiffel, Coliseu, Cristo Redentor, Taj Mahal. Se você já esteve em Cusco/Peru, Paris, Roma, Rio de Janeiro ou Agra/Índia, é bastante provável que traga entre suas fotos imagens muito parecidas – senão constrangedoramente iguais – às de tantos outros turistas que também desbravaram esses lugares. Em atrações como essas, é comum os guias, vendedores ou habitantes locais indicarem os pontos ideais para se sacar uma boa foto. Ou a melhor delas: aquela em que o viajante posiciona-se sorridente em frente ao monumento conquistado, de modo que ambos, viajante e monumento, apareçam nitidamente na imagem. Funciona como uma espécie de certificado, souvenir ou insígnia, um comprovante afetivo de que o visitante, de fato, esteve no local.

As colagens da Série Turista, de Michel Zózimo, partem desse tipo de imagem para criar composições onde a familiaridade – ou o rápido reconhecimento, fundamental para que o certificado fotográfico tenha algum valor – se reveste de estranhamento. Ao mesmo tempo em que o personagem aparece quase que displicentemente justaposto às diferentes paisagens, sem qualquer esforço que procure disfarçar as evidentes montagens – como naquelas fotografias realizadas em estúdios com cenários paradisíacos ao fundo –, seu posicionamento sugere uma fusão – tão desconcertante quanto monstruosa – com os locais retratados. Em lugar da cabeça, vemos os cumes das formações rochosas visitadas.

Impassível diante das eloquentes paisagens, o sujeito de terno e gravata se vê impermeável aos destinos por onde passa. As mãos seguem no bolso, como em sinal de desinteresse, as vestes não se adaptam aos cenários fotografados – antes, remetem a um contexto formal e cerimonioso – e mesmo o ambiente ao seu redor, um gramado desbotado, é trazido com ele, como que a reafirmar a ideia de que o deslocamento nem sempre se traduz em envolvimento. Não à toa, sua postura permanece a mesma em todas as imagens. E sua cabeça segue em outro lugar.

Tal qual o viajante anônimo de Michel Zózimo, muitos parecem querer encontrar, em suas jornadas, apenas aquilo que já esperavam e que, de algum modo, já conheciam: as atrações descritas nos guias, as iguarias sugeridas por amigos, as paisagens que povoavam seu imaginário e que inspiraram a expedição. Nada que represente qualquer risco – ou questionamento sobre quem se é e o lugar onde se quer estar. É como se se tratasse de uma confirmação. Daí que as fotos da viagem parecem estar prontas antes mesmo da partida. Tudo é uma questão de encaixe. Se o turista é atraído pelo exótico, pelo diferente, pelo “outro” oferecido como um estranho a descobrir, também é movido pela possibilidade de se aventurar por aquilo que não conhece de maneira segura, controlada, premeditada.

Ao subverter a trivialidade que costuma caracterizar as documentações turísticas, as produções realizadas por Michel para a Revista Lugares apontam para a fragilidade desses deslocamentos em que as paisagens parecem adquirir o estatuto de meros cenários, servindo mais ao registro ou à confirmação que à experiência. De tom surrealista, os trabalhos apropriam-se de imagens retiradas de enciclopédias antigas para criar composições em que o previsível dá lugar à vertigem daquilo que poderíamos chamar de verdadeira viagem.

* Texto publicado na Revista Lugares da Fundação Iberê Camargo, em maio de 2013.
** Série Turista [Alpes Suíços], 2013.

Sobre escrivaninhas, lugares e modos de habitar



Em que medida os objetos são capazes de constituir lugares? Que memórias e significados carregam? O que eles têm a dizer sobre nós? E em que medida podemos tomar lugares como objetos? Perguntas como essas estão na base das pesquisas desenvolvidas por Helene Sacco, que desde 2007 vem investigando a noção de objeto-lugar.

A primeira vez que atentou para a ideia foi observando as casas transportadas por carretas e caminhões em Santa Catarina, onde muitas famílias têm o estranho hábito de levarem consigo as suas moradas – e não apenas os pertences contidos nelas – ao se mudarem de um lugar para outro. Sua Coleção de casas moventes (2007-2013), série de fotografias que retrata o curioso costume, inspirou a criação de uma casa movente propriamente dita, instalação que recria uma morada condensada em pouco mais de 3 m².

Primeiro objeto-lugar construído pela artista, a habitação sobre rodas continha quarto, cozinha, sala e banheiro. Nela, uma pequena escrivaninha fazia as vezes de pia, enquanto uma cômoda também funcionava como horta e sofá. A cada nova inserção, em locais públicos e ou em espaços institucionais, a Casa movente (2009-2011) buscava instaurar um lugar de encontro e de partilha entre os passantes, vizinhos e visitantes. Transformada em gabinete poético, ao abrigar as investigações de Helene em torno dos locais onde a morada se instalava, a obra está na origem do gabinete de estudos criado para a vitrine da Casa M, em 2011, como parte das atividades da 8a Bienal do Mercosul.

Dessa vez, a artista transformou uma vitrine de pouco mais de 1 m² em uma saleta onde podia ler, desenhar e escrever. Ao longo das três semanas de exposição, parte desse ambiente se desprendia da vitrine para ocupar a rua. Munida de sua mala-escrivaninha – uma escrivaninha que literalmente se transformava em mala –, a artista percorria a vizinhança do espaço, conversando com os passantes, trocando ideias sobre o lugar e desenhando os arredores da morada.

Pois o mesmo móvel utilizado por Helene para dar vida a esse objeto-lugar também protagonizou outro trabalho recente da artista, a Objetoteca (2012). Espécie de escritório dedicado a inventariar e classificar objetos de acordo com sua forma e função, todos os seus elementos podiam ser acondicionados dentro de um baú-escrivaninha. Nele, eram disponibilizadas fichas de catalogação utilizadas pelo público para ampliar o inventário, originalmente contendo 96 objetos.

Na série de desenhos produzida para a Revista Lugares, a escrivaninha é mais uma vez tomada como objeto-lugar por excelência. Entendida como “máquina construtora” ou como “fábrica de ideias e pensamentos”, nas palavras de Helene, ela adquire facetas as mais improváveis, como na versão em que se acopla a uma janela ou no modelo em que é atravessada por uma cama.

Cada mobiliário foi projetado pela artista a partir de referências encontradas na literatura, em textos de Georges Perec, Paul Auster e Walter Benjamin. Trata-se de narrativas e descrições de objetos que, como refere Helene, vêm carregadas da atmosfera de ambientes e têm muito a dizer sobre aqueles que os utilizam e o modo como experienciam seus lugares. Aqui, os objetos não apenas funcionam como lugares, mas os constroem, conformam, constituem. Refletem e tornam visível uma “experiência de lugar”, ao mesmo tempo em que também propõem um modo particular de habitar e conviver com os espaços que configuram.

* Texto publicado na Revista Lugares da Fundação Iberê Camargo, em abril de 2013.

** Fábrica de Objetos-Lugares, 2013. Situada na Rua Uruguai, 1248, subsolo, Setor dos Inservíveis, cep 96010-630. Nanquim sobre papel canson A4.

Deus e a vanguarda



Eterna, onisciente, onipresente, desbocada, irreverente, fogosa, negra e dona de uma sex-shop. Assim é a personagem Deus de Rafael Campos Rocha. Criadora do universo e da vida, amante do sexo, da cerveja e do futebol, amiga do Diabo e dada às frivolidades do mundo, ela protagoniza as histórias em quadrinhos criadas pelo artista. «Fiz um deus que fosse o oposto simétrico do deus das religiões monoteístas adotadas pelo homem moderno ocidental», explica o quadrinista, que em 2012 lançou uma graphic novel dedicada às aventuras de sua toda-poderosa (Deus, essa gostosa, Companhia das Letras).

De fato, a divindade concebida por Rafael não guarda qualquer semelhança com aquele senhor circunspecto, austero e reservado, de barba longa e vestido de branco, que povoa o imaginário religioso. Em uma das cenas da novela, Deus bebe cerveja e come pastel em um boteco na companhia de Satã. Dentre outros temas, os dois discutem pintura e futebol e quasem se matam de rir diante da ideia «humana» de que a arte seria superior ao popular esporte.

Pois na história concebida especialmente para a Revista Lugares, a arte volta à pauta. Dessa vez, Deus flagra o artista fazendo o que chama de «arte de vanguarda» e o condena à danação eterna. Como em outras criações do autor (vale lembrar o super-herói Artista Contemporâneo, criado para a revista Tatuí, entre outras), o humor fino e o tom de deboche voltam-se ao campo da arte e seus «seguidores», aí incluído o próprio Rafael.

Uma certa pretensão a ser diferente, novo, arrojado, a conquistar chancela histórica e a conversar apenas com alguns poucos iniciados são algumas das supostas aspirações artísticas satirizadas pela breve história. «O sentimento de vanguarda ainda é muito forte entre os artistas», comenta o quadrinista, que se diz «de saco cheio de ver antiartista com vinte individuais no currículo».

* Texto publicado na Revista Lugares da Fundação Iberê Camargo, em fevereiro de 2013.

Donna Conlon e Jonathan Harker | 8a Bienal do Mercosul



Os trabalhos da dupla Donna Conlon e Jonathan Harker, que atuam em colaboração desde 2006, combinam interesses e procedimentos próprios de suas práticas individuais. Temas como a voracidade do consumo e do descarte e a conflituosa relação do homem com o seu meio, recorrentes na obra de Conlon, ganham um tratamento absurdo, irônico e por vezes sarcástico. Ao mesmo tempo, a proximidade de Harker com o universo da música e do cinema empresta outro uso a objetos encontrados na rua, como latas, embalagens, sacolas plásticas e outros refugos caros à poética de Conlon. É o que se vê, por exemplo, no vídeo Estación Seca (2006), em que uma estranha sinfonia é obtida por meio de uma chuva de garrafas sobre uma montanha do mesmo material. A paisagem sintética revelada nas imagens também é sugerida em outros projetos da dupla, como na série (Video) Juegos (2008-2009), que tem como pano de fundo a explosão imobiliária da capital panamenha e a profunda transformação vivida pelo país na última década. Nos vídeos, peças encontradas em ruínas de casas demolidas são usadas como fichas e tabuleiros de jogos imaginários, evocando aspectos como as disputas envolvidas na construção e desconstrução de um país e na criação de símbolos e identidades nacionais.

Os nomes das cervejas panamenhas curiosamente refletem o imaginário em torno do país, a começar pela Panamá, uma das poucas no mundo a compartilhar seu nome com a nação onde é produzida. Outro exemplo é a cerveja Soberana, lançada em 1964, ano em que a oposição à presença norteamericana tomou conta das ruas da capital sob o grito de ordem «soberania total». Há ainda a cerveja Balboa, que leva o nome do conquistador espanhol Vasco Núñez de Balboa. Homem de péssima reputação, ele teria «descoberto» o Oceano Pacífico, transformando-se em uma espécie de herói fundador do Panamá e emprestando seu nome à moeda nacional – que, para efeitos práticos, é o dolar americano. Por fim, a cerveja Atlas evoca a condição geográfica do país e a centralidade da passagem interoceânica, o Canal do Panamá, em sua economia e história. Em Drinking Song (2011), Donna Conlon e Jonathan Harker utilizam latas e garrafas de Soberana, Balboa, Atlas e Panamá para tocar o hino nacional norteamericano, cuja música encontra origem em uma «drinking song» ou «canção de bebedeira». Irônica e muito bem humorada, a peça evoca a complexa relação entre os Estados Unidos e o Panamá e aponta para arbitrariedade e o delírio por trás da construção de símbolos nacionais.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.
** Drinking Song, 2011 (still).

Mayana Redin | 8a Bienal do Mercosul



Os desenhos de Mayana Redin constroem paisagens oníricas, geografias fictícias, encontros impensados. Como composições metafísicas, parecem dirigir-se a outra realidade, exterior ao tempo e à história. Mares, montanhas, ilhas, buracos negros, vales e penhascos são alguns dos elementos que integram seus trabalhos, realizados em nanquin, grafite, aquarela ou ainda por meio de vídeos e instalações. Topografias fantasiosas, a exemplo do túnel escavado nas páginas de um livro ou da montanha que aos poucos encobre a paisagem, e cartografias imaginadas, como a que faz do mapa de Portugal um arquipélago ou a que sobrepõe o Rio Amazonas ao Deserto do Saara, são algumas das criações da artista que dão forma ao improvável. A pergunta «E se fosse possível?» parece estar na origem de suas obras, como na videoinstalação Horizonte Alheio (2009), que aproxima o olhar de duas pessoas separadas por um oceano. Em uma tela, vê-se o horizonte filmado a partir da praia de Miramar, em Portugal, na direção suposta da praia de Maria Farinha, no Brasil, de onde o mesmo horizonte é captado e revelado na tela em frente.

Proposições como essa também estão presentes em Geografia de encontros (2010-2011), série de desenhos em que Mayana Redin cria cartografias a partir da sobreposição de lugares e paisagens – ou das linhas que circunscrevem suas formas e definem suas fronteiras. São essas abstrações, limites observáveis apenas no papel – na terra, no ar e na água a passagem entre um território e outro é sempre mais fluida –, que escrevem as aproximações promovidas pela artista. É o caso do encontro entre a maior altitude do mundo, o Monte Everest, e maior depressão, o Mar Morto; da reunião de todos os países sem mar; ou da confluência entre os três mares coloridos – Negro, Vermelho e Amarelo. Características geográficas, questões geopolíticas, condições históricas e imagens sugeridas pelas palavras – como o encontro entre as cidades de Encruzilhada e Entroncamento ou entre a Ilha da Decepção e a da Desolação – inspiram as geografias fictícias de Mayana Redin.  Ao embaralhar limites, representações e significados, seus mapas reordenam o mundo e instauram outras paisagens. Mais uma vez, a pergunta «e se fosse possível?» parece estar na origem de suas imagens.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.
** Estreito de Gibraltar encontra Istmo do Panamá (Da série Geografia de encontros), 2010-2011.

Jonathan Harker | 8a Bienal do Mercosul



As imagens que temos de nosso país e de nossa história – ou as imagens que fazemos de nós mesmos – são sempre construções. Espécies de narrativas que, como lembra Harker, «tentam reconciliar ou ignorar incongruências, imperfeições e ambiguidades em histórias com um início, um meio e um fim, nas quais tudo é claro e todas as peças se encaixam». A maneira como essas narrativas são produzidas e o modo como aproximam ficção e identidade alimentam a obra do artista, que se vale do humor, do sarcasmo e da ironia para apontar fissuras, dissonâncias e fragilidades nas representações que constituem o nosso imaginário. É o caso da série de postais criados para o Panamá (2001-2011), em que Harker se transveste de diferentes personagens, figurando em meio às «riquezas» e «apelos turísticos» locais. A presença do artista e um certo elemento performático são recorrentes em seus trabalhos, sejam eles formalizados em vídeo ou fotografia. É o caso de outras duas obras em que a imagem do Panamá também é evocada: Tomem distância (2002), em que o artista coloca uma mini câmera na boca e canta o hino nacional até vomitar, e Arednab a la Otnemaruj (2004), outra tomada em que a boca do artista aparece em primeiro plano, dessa vez recitando o juramento à bandeira ao contrário.

Manágua, Nicarágua é um foxtrot composto pelos americanos Irving Fields e Albert Gamse. Lançado em 1946, durante a idade de ouro da capital nicaraguense, obteve enorme sucesso à época e até hoje alimenta o imaginário nacional. Convidado a participar de uma exposição sobre a cidade de Manágua, Jonathan Harker – em colaboração com os músicos Iñaki Iriberri e Rodrigo Sánchez – apropriou-se da canção para criar um novo hit. Introduziu pequenas mudanças na letra, como a mudança do tempo verbal, transformou o arranjo e produziu um videoclipe, animando a música por meio de um bem humorado jogo de palavras e imagens. Em inglês e espanhol, os versos de Manawa Nicarawa (2010) celebram um idealizado paraíso tropical – de clima quente, natureza farta, mulheres fáceis, pouco trabalho e muita festa «for a few pesos down» ou «a preço de banana». A imagem caricata, repleta de clichês, reflete o olhar estrangeiro sobre o país. Ao mesmo tempo, evoca a exploração e as desigualdades presentes na conturbada relação entre os Estados Unidos e a Nicarágua, que por décadas sofreu intervenções diretas do governo norteamericano.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.
** Manágua, Nicarágua, 2010 (still).

Lucía Madriz | 8a Bienal do Mercosul



O modo como as relações de poder estruturam a sociedade é um tema central na obra de Lucía Madriz. As construções identitárias em torno da mulher pautaram seus primeiros trabalhos, que aos poucos passaram a enfocar outros interesses, como “a propriedade intelectual, a privatização de recursos naturais e bens de domínio público, a segurança e soberania alimentar e a conversão da natureza em mercadoria”, nas palavras da crítica Tamara Díaz. Um exemplo são as instalações realizadas com grãos de milho, arroz e feijão – trabalhos que questionam o uso de sementes geneticamente modificadas pelos efeitos trazidos à saúde e ao meio ambiente, pelo impacto junto às populações rurais e pela dependência econômica gerada pelo modelo. A preocupação ambiental marca a produção recente de Lucía, para quem a “arte é um meio de apresentar questões e estabelecer um diálogo com o público”. O entendimento está na base de Mi Experimento Verde (2010), um guia prático para adquirir hábitos sustentáveis e tornar-se um cidadão mais responsável com o planeta. A publicação é acompanhada de um blog onde os interessados podem compartilhar seus aprendizados.

Prelúdio (2011) inspira-se em imagens que ilustram a conquista das Américas ou Novo Mundo, a exemplo das gravuras de Johannes Stradanus (1523-1605), Theodore de Bry (1528-1598) e Theodor Galle (1571-1633). Trata-se de representações que funcionam como documentos históricos, recriando fatos, paisagens, vestimentas, objetos e costumes. Realizada com feijões e pedrinhas em diferentes tons, a instalação aponta para as noções de história, território e identidade como narração, interpretação ou construção cultural, isto é, modos de compreender e de se aproximar da realidade. Tais processos também estão presentes, vale lembrar, na maneira como concebemos e nos relacionamos com os distintos países e no modo como eles são representados simbolicamente por uma bandeira, uma moeda, um hino, um traje típico ou uma história oficial.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.
** Prelúdio, 2011 (detalhe).

Angela Detanico e Rafael Lain | 8a Bienal do Mercosul


Angela Detanico e Rafael Lain utilizam o design e a tipografia para desenvolver sistemas de escrita – ou de compreensão e organização do mundo. A arbitrariedade de mecanismos de representação como alfabetos e cartografias e o fato de eles sempre envolverem uma interpretação da realidade estão na base de suas criações. Exemplo disso é O mundo justificado... (2004), em que os artistas redesenham o mapa-múndi com linhas gráficas diagramadas tal qual um texto: justificadas, alinhadas à esquerda, centralizadas e alinhadas à direita. Ao sugerir diferentes conformações geopolíticas, o trabalho evidencia o caráter arbitrário desse sistema de notação, que não apenas representa o mundo, mas o recria, definindo o que é centro, periferia, norte, sul, etc. Uma das obras mais conhecidas da dupla é a fonte Utopia (2001-2003), que combina elementos da arquitetura moderna de Oscar Niemeyer – as letras maiúsculas – a exemplos da ocupação informal das cidades brasileiras – as letras minúsculas. A tipografia cria paisagens urbanas caóticas, que apontam não só para a fragilidade do projeto moderno, mas para as profundas diferenças e tensões que compõem um cenário em constante reconfiguração.

Em Sol médio (Cruzeiro do Sul) (2011), os artistas criam um sistema de representação de um dos símbolos mais conhecidos do hemisfério meridional: a constelação que permite identificar o polo sul celeste. Quatro objetos em forma de pirâmide distribuem-se no espaço, seguindo o desenho das estrelas que compõem o Cruzeiro do Sul. As bases são orientadas para o centro da cruz, fazendo face, cada uma, a um ponto cardeal. Por meio de um jogo de animações, vemos a incidência do sol sobre a paisagem estelar e os efeitos de luz e sombra gerados ao longo do dia, de acordo com a posição de cada objeto. Presente nas bandeiras do Brasil, Austrália, Nova Zelândia, Samoa e Papua-Nova Guiné, o Cruzeiro do Sul é um símbolo compartilhado por povos e nações que, afora a localização geográfica, talvez tenham em comum apenas o passado de “descobertas” por conquistadores do norte, para os quais a constelação foi um instrumento fundamental - mas que de resto, promoveram colonizações absolutamente distintas. Principal ferramenta de orientação ao sul do Equador, ele também integra a bandeira do Mercosul, simbolizando o projeto de integração regional e a ideia de inversão geopolítica – ou de ter por norte o sul.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.
** Sol médio (Cruzeiro do Sul), 2011

Anna Bella Geiger | 8a Bienal do Mercosul



Marcada pela diversidade de linguagens, a obra de Anna Bella Geiger transita pela pintura, desenho, gravura, fotografia, vídeo, xerox e publicações. A pluralidade de suportes, interesses, procedimentos e materiais talvez seja uma das principais características de seu trabalho, que começou a se desenvolver nos anos 1950 sob o signo do abstracionismo informal, passando à chamada «fase visceral» na década seguinte, com formas aludindo a órgãos humanos em representações fragmentadas do corpo. O questionamento sobre a natureza e o papel da arte marcou sua produção nos anos 1970, de forte caráter experimental. O lugar do Brasil e da América Latina no mundo, a formação de um circuito de arte no país e a crítica a uma ideia de brasilidade ou identidade nacional são alguns dos temas que alimentam a obra da artista no período e a levam a utilizar a cartografia como recurso para problematizar a pretensa correspondência entre fronteiras geográficas e territórios culturais. Entre a representação e a camuflagem, seus mapas apresentam-se como esboços ou esquemas de um planeta estruturado não só por meridianos e paralelos, mas por complexas relações de poder.

Integram a mostra Geopoéticas os livros de artista O novo atlas 1 (1977) e A cor na arte (1976) e a série de mapas Variáveis (1977-2010). Como em outros trabalhos da década, o uso de técnicas variadas, como xerox, colagem, serigrafia e costura, e a presença marcante da palavra são aspectos centrais, apontando tanto para os discursos e leituras que alimentam as representações territoriais quanto para a constante reordenação simbólica que as caracteriza. Como se, para além das informações e interpretações que reconfiguram o lugar ocupado por cada país ou continente em um mapa de relações e disputas de poder, a própria cartografia ou bandeira nacional pudesse ser revista – alterada em suas cores e formas, atendendo a diferentes pontos de vista e perspectivas de análise.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.
** Variáveis, 1977-2010.

Fernando Limberger | 8a Bienal do Mercosul



Os trabalhos de Fernando Limberger apresentam-se como paisagens. Articulam vegetação, pedras, formas geométricas e planos de cor em jardins que combinam exuberância e simplicidade, natureza, artifício e racionalidade. Suas composições reconfiguram os ambientes onde se inscrevem, alterando o modo como a natureza os integra ou atravessa, seja pelo uso da cor e efeitos de luz provocados, pela poda e limpeza das espécies ou pela subtração/inserção de novos elementos. A transformação da natureza por meio da ação humana e o modo como ela também age sobre essa intervenção está presente em boa parte de suas criações. Exemplo disso são as sementeiras, mudas e canteiros de cor do projeto Fértil (2003), que estão na origem dos jardins coloridos, recobertos por areias tingidas de rosa e amarelo – inócuas ao meio ambiente. Assim como eles, os arranjos que compõem as instalações Células Verdes (2008) e Complementares (2010) ostentam uma natureza domesticada, ainda que vigorosa, problematizando as contradições e ambivalências dos discursos ambientalistas que tentam dar conta da complexa relação entre o homem e a natureza.

Questões similares estão colocadas no trabalho desenvolvido por Limberger para o pátio da Casa M, uma estreita faixa de terra espremida entre dois prédios residenciais, com diferentes níveis e um depósito aos fundos. Vasos desencontrados e plantas daninhas foram retirados do local, e as áreas de chão batido receberam uma cobertura de areia em tons de vermelho, roxo e rosa. Em meio à vibrante topografia, dois elementos pontuam a paisagem: o abacateiro de copa farta e iluminada e o cubo revestido de madeira queimada (que agora encobre o depósito). Vida e morte, luz e sombra, natureza e racionalidade são alguns dos binômios evocados pela sedutora e ao mesmo tempo desajustada dupla. Um drama barroco parece se desenhar na melancolia e torpor dos personagens, quando percebemos o tom burlesco da cena, que não nos impede de fantasiar uma história de amor – enquanto tomamos sol, jogamos conversa fora, compartilhamos um chimarrão ou lemos um livro nesse jardim feito obra.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.

Vitor Cesar | 8a Bienal do Mercosul



As noções de público e esfera pública são caras ao trabalho de Vitor Cesar. Muitas vezes apresentados em espaços não artísticos, como as ruas de São Paulo ou Fortaleza, seus projetos quase sempre envolvem uma estratégia de comunicação com o outro e uma problematização do contexto em que se inserem – ou dos discursos que alimentam o imaginário sobre determinado lugar. Cartazes, painéis e letreiros são alguns dos dispositivos utilizados pelo artista em propostas que se confundem com práticas e elementos da vida comum. É o caso da ação em que o artista disponibilizou um serviço de xerox que realizava cópias gratuitas de materiais com a palavra «público», do cartaz distribuído por Fortaleza com a inscrição «permitido», seguindo o mesmo padrão visual das placas de trânsito, ou ainda da inscrição «artista é público» disposta em letras de alumínio no saguão de um centro cultural. Quem são os públicos da arte? Quais as relações entre artista e público? É possível constituir uma esfera pública por meio da arte? Discussões como essas permeiam os trabalhos de Vitor Cesar e parecem ganhar força na medida em que o contato com suas obras se dá sem a intermediação institucional da arte, isto é, sem que se saiba, necessariamente, que se tratam de projetos artísticos. 

É o que acontece no projeto criado para a Casa M, em que o artista desenvolve uma campainha para o local. Um dispositivo sonoro que conecta o ambiente externo ao interno e anuncia a chegada de novos visitantes. Ao ser acionada, ela dispara diferentes toques ao longo da morada, dando as boas vindas a quem chega e evocando a diversidade de públicos do lugar. A variedade de usos e atividades também é sugerida pela campainha, que ressoa de um modo distinto a cada espaço, reafirmando suas particularidades. Entre a sinfonia e a dissonância, o trabalho celebra a possibilidade do encontro, sem nivelar diferenças nem eliminar ruídos, sem apaziguar divergências nem desconsiderar especificidades. É a ideia de convivência que está em jogo – ou ainda, de constituição de uma esfera pública. Será possível produzir uma nos dias de hoje? Engajar diferentes públicos em um debate crítico e desenvolver interpretações compartilhadas da realidade? Mais uma vez, o trabalho de Vitor Cesar confunde-se com um elemento da vida comum, potencializando a estranheza, o encantamento e a reflexão que produz.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.

Daniel Acosta | 8a Bienal do Mercosul



Entre objetos e lugares, paisagens e arquiteturas, cômodos e mobiliários, os espaços criados por Daniel Acosta oferecem o que o artista chama de «disponibilidade funcional». Marcadamente distintos dos contextos onde se inserem – da praia à cidade, passando por museus e galerias – eles parecem se camuflar senão visual, pelo menos funcionalmente. Dependendo das características e usos do lugar, podem figurar como ponto de encontro, espaço de leitura, área de descanso, ambiente de trabalho, local de conversa, entre outras possibilidades. Tais trabalhos têm sua origem nas «paisagens portáteis» do início dos anos 2000, que também se apresentavam como híbridos entre objetos e lugares. Plástico, fórmica e lâmpadas fluorescentes criavam ambientes assépticos e impessoais. Ao embaralhar um sem número de referências arquitetônicas – cabines, elevadores, quiosques, piscinas –,  pareciam-se com quase tudo e praticamente nada ao mesmo tempo. Como nas obras mais recentes, o que estava em jogo era desafiar nossa percepção a escapar dos registros que habitualmente informam a decodificação do mundo e rapidamente articulam aparências e funções, materiais e lugares, imagens e significados. 

A chamada «disponibilidade multifuncional» também está presente em REPLIKASHELVESYSTEM (2011), peça desenvolvida pelo artista para abrigar a coleção de livros, catálogos e revistas do Núcleo de Documentação e Pesquisa da Fundação Bienal, disponível para consulta na Casa M. O trabalho marca a entrada da sala de leitura, organizando o ambiente. De desenho geométrico e estrutura modular, retoma aspectos caros à sua poética. Dentre eles, a criação de equipamentos que se articulam entre lugares e mobílias, arquiteturas e paisagens; a «camuflagem funcional» acompanhada de uma clara distinção visual em relação ao contexto; o embaralhamento de códigos e referências arquitetônicas; e o maravilhamento provocado pelo que o trabalho traz de assombro e fantasia, quimera e realidade.

* Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2011.

Sobre desencaixes



A aproximação de realidades aparentemente inconciliáveis está na base dos trabalhos desenvolvidos por João Genaro. Sempre com uma boa dose de humor, o artista se vale de um procedimento caro ao Surrealismo para criar objetos e situações paradoxais, que muitas vezes partem de comentários à história da arte. É o caso do Parangolé Simoniano (2009), que mescla um traje típico gaúcho, o poncho, a uma obra icônica da arte brasileira, os Parangolés de Hélio Oiticica, capas coloridas feitas para serem experimentadas pelo público. Usada pelo artista em performances não anunciadas, a peça homenageia o escritor regionalista Simões Lopes Neto, natural de Pelotas, aproximando referências artísticas de naturezas distintas. Outros exemplos são Fat Chair (2010), cadeira com uma estrutura de espuma em seu assento que remete à famosa obra de Joseph Beuys, e Homenagem a Torres García (2007), composição construtivista realizada com peças de Lego. A sugestão de interação é outro elemento recorrente na obra de João Genaro, como no machado protegido por uma caixa de vidro onde se lê “em caso de crime, castigue o vidro” e no saco de boxe recheado com 50 kg de barro que ostenta a inscrição “sove”.

Procedimentos semelhantes estão presentes no trabalho desenvolvido para a Casa M, em que o artista cria uma espécie de quarto de banho na vitrine. Protegida por um biombo feito com cera de abelha, uma banheira repleta de mel chama a atenção dos passantes. A teatralidade, o vazio e o desencaixe da cena inspiram narrativas, como se acusassem uma história em suspenso. A sensação de que algo está por acontecer não deixa de evocar a performance que dá origem ao trabalho: um banho de mel na vitrine. Entre o ritual e o trivial, a ação desconcerta o lugar. Aproxima intimidade e exposição, acentuando a própria condição de um espaço que protege ao mesmo tempo em que exibe, separa ao mesmo tempo em que conecta. Um doce aroma de mel toma conta da Casa M e, a seu modo, produz outro desencaixe e evoca novas narrativas.

* Texto publicado no periódico da Casa M / 8a Bienal do Mercosul de novembro-dezembro, dedicado à sétima e última vitrine do projeto, de autoria de João Genaro.

Ficções remotas



A ideia de impossibilidade está presente em muitos trabalhos de Glaucis de Morais: na imagem que revela uma ponte entre dois abismos, nas fotografias que tentam capturar o voo de um pássaro ou a passagem de um avião, na tentativa de manter de pé um castelo de cartas, na série que retrata o desvanecimento do corpo em meio à escuridão. Operações sutis – delicadas na forma, mas agudas nas reflexões que evocam – compõem a obra da artista, que se vale do vídeo à fotografia, passando pelo desenho e pela instalação. Os modos de habitar um lugar, seja ele a cidade ou o espaço íntimo da casa, são um tema frequente em seus trabalhos. Caso da intervenção em que dispõe o aviso «reservado» em parques e praças de Paris e Porto Alegre, embaralhando as noções de público e privado e sugerindo outra impossibilidade.


A noção também é cara ao projeto desenvolvido para a vitrine da Casa M. Em Lugar remoto, Glaucis constrói um retrato de Porto Alegre a partir de olhares distantes e fragmentados: depoimentos de seis estrangeiros que nunca estiveram na cidade e só a conhecem por meio de um cartão postal. A fotografia de um parque, de um viaduto e de um monumento são algumas das pistas que inspiram essas ficções remotas, como a de que a capital teria sido colonizada por gauleses. “Ela me mostrou uma imagem e rapidamente reconheci um gaulês”, diz um dos entrevistados, referindo-se à fotografia do Laçador. Mais que nos falar de Porto Alegre, as leituras e percursos imaginários coletados pela artista atestam a impossibilidade de se representar um lugar – ou ao menos, de se construir uma imagem única, que dê conta das infinitas histórias e experiências que o atravessam e que ele pode propiciar. Próxima ou distante, conhecida ou não, em alguma medida toda cidade será sempre uma ficção particular.

* Texto publicado no periódico da Casa M / 8a Bienal do Mercosul de outubro-novembro, dedicado à sexta vitrine do projeto, de autoria de Glaucis de Morais.

A mochila e a andorinha



Uma andorinha de mochila nas costas nos fita com sinceridade. Está pousada num esboço de galho em meio a um campo de ventos. E aqui compartilho o que recém aprendi sobre mapas meteorológicos: setas representam a direção e velocidade dos ventos, enquanto pontos indicam a presença de espaço-ar – e a potência de movimento. Pois a andorinha estática de pertences nas costas condensa a aventura do pássaro migrante. Enquanto tudo passa, passa a pequena ave por nós a carregar sua vida. Mancha cinza no céu rumo a outros galhos, outros cantos.

Se a ficção compromete-se com a vida, também é da vida o compromisso com a ficção. Enquanto a andorinha, que mais tarde pousará em outras imagens, aguarda a direção dos ventos, Helene Sacco constrói um gabinete poético na vitrine da Casa M. Um observatório não de pássaros nem de ventos, mas daquilo que passa quando nada passa, salvo o tempo. Um espaço de trabalho voltado a inventariar a rua: suas moradas, carros, gentes, negócios e movimentos.

Como a mochila, a andorinha e as casas moventes que habitam a obra da artista[1], parte do estúdio desloca-se para outros lugares. Ao aproximar-se do que indaga, Helene Sacco radicaliza a condição da vitrine de ocupar o dentro, mas voltar-se para o que está fora. Escrivaninha e maleta a um só tempo, o dispositivo criado pela artista transita pela Fernando Machado, alimentando a produção de textos, desenhos e fotografias. A coleção de prospecções toma conta do gabinete e prepara a confecção de um livro. Inventário de movimentos, suas páginas não se resumem a setas e pontos, mas guardam potência semelhante à de um mapa meteorológico: andorinhas e direções.

* Texto publicado no periódico da Casa M / 8a Bienal do Mercosul de agosto-setembro, dedicado à quarta vitrine do projeto, de autoria de Helene Sacco.

[1] A noção alimenta dois trabalhos recentes: Coleção de casas moventes (2007-2011), fotografias que retratam moradas sendo transportadas por carretas e caminhões, e Casa Movente (2007-2011), instalação que recria uma casa condensada em pouco mais de 3 m².

De lambê os beiço



Frango, barbearia, animais reprodutores, bar de sinuca, apoio aos portadores de joanete e especialista em aracnídeos são alguns dos produtos e serviços anunciados pelas placas de Viviane Pasqual, em exibição na vitrine da Casa M. Espécies de anedotas gráficas, cada tabuleta aponta para um universo particular – como se materializasse um quadro de uma história em quadrinhos, um plano de uma animação ou um capítulo de um livro que não se sabe ao certo em que prateleira colocar. Ou ainda, como se cada placa funcionasse como anotação, esboço ou versão de uma longa e mesma história – o que não deixa de apontar para o lugar que um trabalho sempre ocupa na poética de um artista: algo como um ensaio de um longo e mesmo, ainda que sempre diferente, processo.

O traço pueril das pinturas, desenhos e inscrições – e o flerte com o naif e o cartoon, e segue a dificuldade de posicionar na estante – deixa perceber uma agressividade difícil de nomear. Uma provocação, talvez seja a melhor palavra, que ganha expressão no humor ácido e ao mesmo tempo afetuoso, na objetividade de linhas tortas e na ironia que não se sabe se intuitiva ou intencional – e aí estão o desconcerto, o giro e a delícia da obra de Viviane. Dizeres jocosos e irreverentes compõem as tabuletas, reforçando o traço cartunista e a alusão ao universo popular, seja pelos textos, muitas vezes retirados de anúncios encontrados na rua, pelo despojamento das formas e soluções gráficas ou pelos materiais utilizados.

O acúmulo e a repetição são componentes importantes de seu trabalho e também os procedimentos que guiam o projeto desenvolvido para a Casa M. Abarrotada de objetos, imagens e anedotas, como que ansiosos para mostrar-se e esconder-se a um só tempo, a vitrine da morada – que funcionou como chapelaria no início do século passado – retoma sua condição de mostruário. De elegantes adornos, que a seu modo também inspiravam narrativas, passa a exibir pedaços de uma obra. Placas de “lambê os beiço”, deixar “vira-lata nervoso” e sair correndo à procura de uma “PHD em aracnídeos”. 

* Texto publicado no periódico da Casa M / 8a Bienal do Mercosul de julho-agosto de 2011, dedicado à terceira Vitrine do projeto, de autoria de Viviane Pasqual. 

Dos lugares que nos conformam



Fios, lâminas, serras, ioiôs, pesos, varetas, grampos e outros objetos comuns e materiais de ferro velho compõem as instalações de Rogério Severo. Sob a forma de redes ou circuitos, elas criam desenhos no ar em resposta ao espaço onde são construídas. É ele que orienta a distribuição das peças, ainda que as composições pareçam se manter em aberto, como se pudessem ter seus vetores e linhas de força reconfigurados a qualquer instante.

A sugestão de movimento é dada pelo jogo entre compressão e distensão, tensão e equilíbrio. E também pelo modo como o artista revela, no próprio trabalho, as operações que o constituem: as amarras, flexões, pesos, contrapesos, trações, fixações, etc. «O que está à mostra não é um projeto acabado, e, sim, possibilidades, fragmentos, intenções», explica Severo.

O improviso, a capacidade de adaptação e a atenção ao que requerem espaço e materiais são aspectos centrais no processo criativo do artista, como também é o caso na instalação desenvolvida para a Casa M. Aqui, o lugar a que o trabalho responde é definido não tanto pelas paredes ao redor, mas pelo retângulo de vidro que desconcerta a fachada e revela o interior da morada a quem transita pela Fernando Machado. A mesma vitrine que no início do século passado seduzia os passantes com uma variedade de chapéus é agora usada para despertar outro tipo de interesse, desejo, curiosidade.

Apesar da simplicidade de procedimentos e materiais, as obras de Rogério Severo não se filiam a uma «estética da gambiarra». Falam, antes, de uma espécie de inteligência dos objetos. Do modo como eles conformam nossos espaços e da possibilidade que guardam de se reinventarem. Ou de reinventarem os lugares que nos conformam.

* Texto publicado no periódico da Casa M / 8a Bienal do Mercosul de junho-julho de 2011, dedicado à segunda Vitrine do projeto, de autoria de Rogerio Severo. 

Entre


A invisibilidade que a arquitetura acaba adquirindo com o tempo, isto é, o modo como deixamos de perceber os ambientes que nos rodeiam, é o ponto de partida para os projetos de Tiago Giora. Mais do que criar novas formas, suas obras sublinham desenhos e estruturas já existentes nos locais onde se inscrevem. Apagamento, preenchimento, rebatimento e derramamento – de pisos, paredes, colunas, degraus – são algumas das operações utilizadas pelo artista para reconfigurar espaços, fazendo reverberar certas características e rearticulando nossa percepção sobre os lugares.
 
É o caso da instalação Fluorescentes (2009), desenvolvida para o Centro Cultural São Paulo, em que Giora estendeu até o chão o traçado formado pelas centenas de lâmpadas que iluminam o prédio, chamando a atenção para uma das marcas do local. Já na intervenção De dentro (2007), realizada no Torreão, em Porto Alegre, dois cantos da sala expositiva foram seccionados por planos de gesso, apagando parte do teto, paredes, janelas e rodapés – e, paradoxalmente, tornando mais visíveis os elementos que constituíam o espaço.
 
Procedimentos como esses também estão presentes no trabalho desenvolvido para a Casa M, em que o artista parte do desenho formado pela arquitetura interna da morada para criar uma intervenção na vitrine. Revelados pelo vidro, as paredes e o piso do café determinam o plano de gesso encobrindo parte da fachada. O título do projeto, Entre, alude à condição da vitrine de estar sempre entre um local e outro, como uma espécie de membrana que protege ao mesmo tempo em que expõe, separa ao mesmo tempo em que conecta. Também nos fala do modo como ela é envolta pela obra e, claro, da abertura da Casa M e do convite que a intervenção não deixa de significar.
 
Como em projetos anteriores, a operação de Tiago Giora absorve o lugar, tornando indiscernível o que é obra e o que é contexto – e questionando o que percebemos e o que falta ser visto. Como um convite a voltar os olhos para onde aparentemente não há nada para ver – ou para onde, há algum tempo, a vista era barrada por tapumes que encobriam memórias agora revitalizadas pelos novos usos e públicos da morada. Entre! 

* Texto publicado no periódico da Casa M / 8a Bienal do Mercosul de maio-junho de 2011, dedicado à primeira Vitrine do projeto, de autoria de Tiago Giora.

As cidades e o emaranhado


Embora habitem terras tão distantes quanto areia e papel, as cidades de Pedro Varela são como desdobramentos de uma só. Atrevo-me a chamá-la Varela, em referência aos lugares narrados por Marco Polo ao conquistador mongol Kublai Khan em As cidades invisíveis, de Italo Calvino.

Se visitada pelo viajante veneziano, Varela chamaria a atenção por suas distintas conformações. O desenho das ruas, a arquitetura das casas, a invenção dos edifícios, a matéria das coisas, as cores, as montanhas, os jardins são outros a cada investida. É como se a cidade brotasse diferente sempre que intuíssemos conquistá-la. E com viço de erva daninha em paisagem tropical, crescesse e transbordasse em outras.

Pra dentro e pra fora.

Varela é daquelas cidades que comporta muitas versões de si mesma. Ensaios ou esboços de um projeto que nunca chega a se concluir. Como Tecla, que se constrói continuamente à imagem do céu, ou Valdrada, que se reflete igualzinha no lago, ainda que assimétrica, Varela é todos os seus espelhos e desdobramentos.

Lugar sem bordas feito de bordas.

Varela não possui habitantes – e esse talvez seja seu maior mistério. Varela é viva em si. Em suas formas e em seus vazios. Naquilo que é e naquilo que pode ser. Varela é viva nas suas minúcias, na sua delicadeza. Nas suas histórias, nos seus caminhos, na sua vertigem. No modo como se faz e refaz constantemente. Na sua suspensão, na sua suspeição.

Varela é viva no olhar.

Nas linhas que reinventam a cidade vista do mar pela janela da barca. Nas dobras. Nos recortes que fazem entrever paisagens. Nos traços e colagens que conformam becos, vielas, pontes, palácios, telhados, janelas, praças, estradas... Na areia que se compacta.

Varela não foi conquistada por Kublai Khan, nem descrita por Marco Polo. Mas como Zora, Marósia, Tecla, Irene, Fílide ou Valdrada, alguns dos lugares narrados pelo viajante, mostra-se cidade para falar de cidades. Das coisas que as povoam e são por elas povoadas. Desse emaranhado que é ver e compartilhar vazios e paisagens.

* Texto publicado no folder da individual de Pedro Varela no Paço das Artes, em São Paulo, como parte da Temporada de Projetos 2010. A exposição aconteceu de 12 de julho a 29 de agosto de 2010.
** Rioniterói, desenho-performance em uma barca, 2005.