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Sobre caminhos, labirintos e conexões


Na entrevista a seguir, Pedro Varela fala do percurso até chegar às suas cidades, dos artistas para quem vem olhando nesse trajeto, de labirintos, conexões com o mundo real, fábulas, coleções e da ideia de que seu trabalho não cresce em linha reta, mas esparrama-se ao modo de suas paisagens.

Como você começou a trabalhar com cidades?
Foi um processo gradual. Em 2005, trabalhava numa série de aquarelas que apresentavam um emaranhado de signos: formas geométricas, manchas, linhas, imagens apropriadas de fotografias e livros de arte, enfim, toda referência visual que pudesse usar. Apesar da aparência abstrata, aos poucos comecei a entender esses trabalhos como paisagens, pois de certa maneira eles falavam de como eu percebia meu entorno. Cada signo, imagem ou forma funcionava como um link, uma janela para um novo assunto. Na época, pensava muito na nossa percepção do mundo contemporâneo, abarrotado de imagens. Ao transitarmos por diferentes redes sociais e absorvermos todo tipo de informação, nosso olhar já não comporta uma única janela, perspectiva. Aos poucos, nessa mesma série, foram aparecendo espaços vazios, o branco do papel, e isso aproximava cada vez mais esses trabalhos de paisagens, principalmente as chinesas e japonesas orientadas pelo budismo. Quando tomei consciência disso, resolvi investigar mais a fundo tanto a ideia de paisagem, quanto esse vazio, esse silêncio do branco do papel. Propus a mim mesmo resolver essa mistura de signos e referências usando imagens de arquitetura. Além disso, deixei que os espaços em branco ganhassem uma dimensão simbólica e não apenas formal. Comecei então a desenvolver a série de “paisagens flutuantes”. No início, usava apenas caneta esferográfica e de gel sobre papel de arroz, produzindo desenhos perdidos no vazio do papel, que apresentavam a mesma mistura de referências dos trabalhos anteriores. Cada prédio ou conjunto de edificações estava orientado de acordo com uma perspectiva própria. Além disso, buscava criar um jogo poético entre ilusão de volume e planaridade.

Para quem você olhava nessa época, quando passou a direcionar mais sua pesquisa? Algum artista ou referência do cinema, música, literatura em especial?
Meus pais são professores da Escola de Belas Artes da UFRJ, minha mãe de pintura e meu pai de gravura, então sempre acompanhei de perto a produção deles. Além disso, tinha muito material à disposição, muitos livros que eu folheava de vez em quando. Aos poucos, fui buscando novas referências e criei uma pasta no computador com imagens de trabalhos de artistas contemporâneos que encontrava em sites de museus, publicações de arte e galerias. Cheguei a ter quase cinco mil imagens. Também fui buscando referências fora das artes visuais. Cidades Invisíveis, do Ítalo Calvino, foi super importante, mas só entrei em contato com o livro depois de começar a desenvolver as paisagens flutuantes. Jorge Luis Borges é outra referência fundamental. Hoje tenho visto muita coisa de arquitetura. Gosto do Archigram, dos desenhos arquitetônicos do Ettore Sottsass, da Zaha Hadid, do Rem Koolhaas e de tantos outros. Acho muito legal essa vontade de pensar as "mega estruturas", de investigar possibilidades diferentes de espaço urbano, construir modelos alternativos de organização social e espacial.

Os labirintos do Borges também podem ser uma chave de leitura interessante para pensar os seus trabalhos...
Sim, gosto muito do Borges. É um dos meus escritores preferidos. Acho que a noção de labirinto está muito presente no meu trabalho. Talvez o vazio dos desenhos seja uma espécie de labirinto, assim como o jogo de perspectivas trucadas. Também a ideia do Aleph, de um ponto a partir do qual se pode abarcar tudo que acontece no mundo, está bastante presente.

A proposição de um urbanismo fantasioso a partir de referências da arquitetura e dos quadrinhos também me levam ao Archigram, mas ali existia a vontade de por à prova projetos de cidade, de refletir sobre a Londres dos anos 1960 e a rápida transformação que a cidade sofria. Já nos seus trabalhos, não percebo essa alusão mais concreta ao mundo real, isto é, a questões sociais, políticas e econômicas que perpassam e conformam as cidades. Ainda que suas cidades sejam sempre feitas de um mesmo material, ou seja, a partir de uma mesma massa informe, que, no caso das cidades reais, poderia ser formada pelos habitantes – exatamente aquilo que «falta» nas Varelas. Talvez por aí consiga pensar numa relação com o mundo real. Para você, essa conexão ou alusão ao mundo real existe? Como ela se dá?
Acho que existe, sim, uma conexão com as cidades reais, mas ao mesmo tempo há uma vontade de criar um mundo de fantasia, de trabalhar com alegorias, fábulas, narrativas. Penso às vezes que estou contando histórias. Uma possível relação com o mundo real é que minhas cidades imaginárias tentam, em muitos aspectos, ser o oposto das urbes contemporâneas, das grandes megalópoles. Em vez de cheias, são vazias; no lugar do cinza do concreto, possuem cores; ao invés do reto, as curvas e os barroquismos; o silêncio substitui o barulho do trânsito e o burburinho; e a separação entre diferentes culturas e classes sociais dá lugar a um jogo de perspectivas truncadas e referências miscigenadas. São cidades domadas, mansas. Assim como um jardim seria uma alegoria da natureza domesticada, quero que minhas cidades sejam alegorias de urbes domesticadas. Atualmente, estou trabalhando num projeto chamado Arquitetura Camelô, que traz entradas mais efetivas na arquitetura, no espaço da cidade. Nele, a vontade de repensar os espaços urbanos (de forma utópica ou efetiva) está mais presente, mas sem que o trabalho perca o dado da fábula.

Fiquei pensando que a noção de coleção, que está na origem da sua pesquisa, também diz do seu trabalho, que não deixa de se constituir como uma coleção de cidades.
Faz sentido, mas para mim essa é uma ideia muito recente. Hoje percebo que a necessidade de contar histórias e criar diferentes situações dentro das cidades me impele a utilizar materiais variados, como areia, vinil adesivo e desenho sobre vidro, para citar alguns exemplos. Também penso muito em formas diversas de ocupar o espaço e organizar essas cidades. Com o tempo, é natural que elas se transformem numa coleção de possibilidades, de diferentes narrativas e fábulas. Mas como disse, é algo que só pode ser percebido recentemente. O processo de colecionar cidades leva tempo até ganhar forma.

Pensando nas diferentes cidades que compõem essa coleção (cidade desenho, cidade colagem, cidade de papel, cidade de vidro, cidade de areia), o que elas têm em comum e o que apresentam de particularidade?

Gosto de pensar que meu trabalho não cresce em linha reta. Prefiro imaginar que está se esparramando ou criando novos tentáculos com diferentes possibilidades, metáforas, narrativas. Cada série de cidades tem características muito específicas, relacionadas diretamente às possibilidades materiais e poéticas que cada elemento oferece. A cidade de areia tem uma fragilidade que só a areia da praia poderia apresentar. A cidade de papel tem um branco fantasmagórico e uma dimensão de maquete que são o oposto das cidades que desenvolvo com colagem em vinil adesivo colorido sobre parede. As cidades desenhadas sobre vidro procuram um diálogo com o mundo real através da sobreposição de mundos distintos. E as cidades desenhadas com caneta bic sobre papel de arroz parecem se distanciar da dureza do mundo real. Ao mesmo tempo, todas apresentam espaços urbanos idealizados, que estão no limite entre utopia e fantasia, entre o que está finalizado e o que é esboço.

Essa ideia de que o trabalho não cresceria em linha reta, mas esparramando-se tem a ver com o que escrevi em As cidades e o emaranhado. Com a ideia de que as cidades que você cria, na realidade, são uma só nas suas potenciais e infinitas conformações.

Sim, tudo a ver. Apesar de o trabalho se constituir por meio dessa profusão de cidades, elas são sempre uma só. Por mais distintas que possam parecer formal ou materialmente, talvez sejam fruto da mesma motivação: a vontade de construir um lugar entre a utopia e a fantasia, entre a possibilidade de transformação da realidade e a vontade de criar mundos distantes, que refletem ansiedades e desejos pessoais.

Para finalizar, você consegue projetar o seu trabalho para além das cidades que vem construindo? Mesmo que essa pesquisa ainda tenha muito chão pela frente. Às vezes não bate o medo da repetição ou do esgotamento dessa investigação?
Sempre tenho medo da repetição, de falar mais do mesmo. Mas ao mesmo tempo, estou num momento de entender melhor o que tenho feito e vejo que ainda tenho alguns projetos para desenvolver dentro do assunto da paisagem. Gosto de pensar que meu trabalho acontece na exposição, na articulação de conceitos específicos dentro de uma proposta de ocupação do espaço. Ultimamente, tenho refletido muito sobre duas possibilidades distintas de desenvolvimento das Varelas. Possibilidades que de alguma maneira se complementam e agregam sentido aos trabalhos anteriores. A primeira é adentrar de forma mais efetiva no espaço urbano, produzindo trabalhos que tenham uma dimensão arquitetônica e que façam parte da cidade. Tenho pensado em uma arquitetura rizomática e flexível, sem uma função pré-determinada. A segunda seria entrar um pouco mais no universo da pintura, explorando propriedades desse meio. Gosto de imaginar que a pintura é um romance, enquanto o desenho é um conto. Mas penso, sim, em um futuro para além das Varelas. Cada vez mais percebo que meu trabalho está menos no ato de construir cidades e mais no que as cidades podem dizer.

* Entrevista publicada no site do Paço das Artes, como parte do acompanhamento crítico realizado ao longo da Temporada de Projetos 2010.
** Cidade flutuante, desenho e instalação, 2010.

No fio da navalha


Arte e política é o tema do livro lançado em 2007 pelo cientista social Miguel Chaia – e o ponto de partida desta entrevista, que em muitos momentos se aproxima de uma conversa. Perguntas ganham um tom afirmativo, ou antes, expressam questionamentos pessoais, ao mesmo tempo em que as respostas indagam constantemente suas posições, evidenciando o caráter investigativo do pensamento de Chaia. “Estou afirmando agora o que penso por enquanto”, diz o professor e pesquisador do Núcleo de Arte, Mídia e Política da PUC/SP, para quem a relação entre arte e política é, antes de tudo, paradoxal.

Em Arte e Política [Azougue Editorial], você afirma que o encontro entre esses dois campos é um encontro de convivência paradoxal. Pode falar um pouco sobre essa ideia?

A arte tem um domínio próprio, se constitui como linguagem, como poética expressiva. Diria que ela possui um campo autônomo, que pode estar ligado a outras esferas, como a religião e a filosofia, mas não necessariamente está. Por outro lado, a política é um campo forte, abrangente, que pode afetar a arte de duas maneiras: ou instrumentalizando-a, ou dificultando a produção artística. Onde estaria o paradoxo? A arte aponta numa direção, que é a direção da criatividade, da liberdade, da pesquisa e da revolução de linguagem, e a política aponta para outro lado, que é a esfera das relações de poder, do conflito aguçado, da luta por pequenos poderes. Mas nada impede que a arte constitua-se como micropolítica ou mesmo como macropolítica. Um exemplo de micropolítica é a obra 111, do Nuno Ramos. O trabalho coloca a posição política de um sujeito, o artista, no interior de uma determinada situação histórica [o massacre de Carandiru]. Nesse caso, estamos falando não da política de Estado, ou partidária, mas da posição de um indivíduo. Por outro lado, se analisarmos o realismo socialista que se desenvolve na União Soviética, temos a arte não mais na esfera da micropolítica, da discussão circunscrita, mas como experimento da política de Estado, das relações de dominação. Uma experiência intermediária é a obra do Candido Portinari, que fica um pouco na esfera da micropolítica, mas possui aproximações com o Partido Comunista Brasileiro e com o Estado.

Essa ideia de paradoxo não traduz um certo temor bastante recorrente no debate sobre arte e política de que, na convivência entre esses dois campos, o político se sobressaia e o artístico fique como que sufocado, solapado?

De certa forma, sim. Mas em que sentido a expressão poética e a dimensão estética podem ser eliminadas pela política? Só e quando não há preocupação com o desenvolvimento da linguagem, com a discussão da linguagem, com a revolução da linguagem. Quando não existe liberdade para a formulação de uma poética própria. É um fator eminentemente estético que garante à arte política que ela não seja engolida pela grande política. Essa redução da preocupação com a linguagem acontece de maneira muito clara no realismo socialista e também na arte nazista. Tanto um, quanto o outro, reproduzem linguagens já estabelecidas, seja o realismo, seja a arte grega. Mas existem casos em que uma dimensão política forte pode conviver com uma experiência de linguagem. No muralismo mexicano, por exemplo, o Estado praticamente subsidia os artistas, mas pela experiência que eles têm na Alemanha com o Expressionismo e o Fauvismo, os muralistas mexicanos vão trabalhar junto com o Estado, mas desenvolvendo suas próprias linguagens. Vão se utilizar da montagem cinematográfica, da história em quadrinhos, da pintura expressionista. É essa liberdade de experiência que faz com que a dimensão estética se mantenha. Mas até certo ponto, porque quando existe esse envolvimento com a política de maneira tão forte, com um partido político, com o Estado, ou mesmo com uma ideologia, há uma tendência a um certo esvaziamento. Outro exemplo é a produção brasileira dos anos 1960 e 1970. Artistas como Artur Barrio e Carlos Zílio produzem experimentos bastante radicais sob o impacto da ideologia política, mas aí também temos uma autonomia de linguagem, uma pesquisa de linguagem. Situações como essas me fazem pensar que é possível falar em ciclos. Tenho a impressão de que a relação entre arte e política não se dá de forma constante. Existem momentos em que ela fica mais forte e momentos em que enfraquece, como se as obras que trouxessem uma dimensão política mais acentuada fossem produzidas durante um certo tempo: o tempo do conflito, da guerra, isto é, o tempo em que a política se constitui como grande cenário.

Em que existe um contexto social tensionador...

Exato. Que gera a necessidade de aproximar a arte desse cenário. A arte política no Brasil dura até a década de 1970. O realismo socialista também dura do final dos anos 1920 até os anos 1950, 1960. A arte nazista se produz durante a guerra, e as vanguardas também. Essa é uma questão que me instiga: por quanto tempo a obra de arte pode ser produzida politicamente?

E quanto ao momento atual, de meados dos anos 1990 para cá, não te parece que houve um fortalecimento de uma arte de preocupação política? Penso nas produções que se realizam em contextos sociais específicos, que se voltam para o espaço público, ou para comunidades, que flertam com o campo da antropologia.

Concordo com você. Mas desde que se considere a negação desse fenômeno em paralelo. Porque se percebêssemos constantemente a aproximação entre arte e política, se essa relação se rotinizasse, é como se a arte deixasse de ser autônoma, deixasse de ser linguagem, poética. Teríamos então de dizer que toda arte é política, mas como essa relação é paradoxal, há momentos em que esses campos se aproximam e momentos em que eles se distanciam. A arte não é o campo da política, nem o da economia. Diria que hoje a relação entre arte e política desdobra-se em duas esferas. A primeira é a da relação da arte com o mercado. Principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, vivemos, nos últimos anos, um crescimento do mercado de galerias e de grandes exposições institucionais espetacularizadas. Mas não se pode dizer que o mercado tenha ganho a parada, porque paralelamente a arte contemporânea ganhou uma dimensão reflexiva. Talvez em função da força do conceito, talvez pelo fato de um grande número de artistas contemporâneos não trabalhar necessariamente com o objeto, mas com a idéia, não trabalhar no cubo branco, mas na cidade, não trabalhar voltado para uma galeria, mas para um bairro. O que acontece é que a arte contemporânea abriu um leque, que pode levar tanto para uma postura individual radical, de negação, ou de crítica ao mercado, mesmo participando dele, quanto para uma postura voltada para o campo social, ou sócio-político. Vemos hoje um grande número de ativismos artísticos e estéticos, artistas que perambulam por favelas, por bairros pobres e formam o seu campo de atuação ali. Nesses casos, a arte se constitui na construção de uma trama coletiva no qual o estético passa a servir para agregar as pessoas sob uma determinada direção de sociabilidade mais complexa, mais sofisticada, mais humanizada. O JAMAC é um exemplo, mas têm muitos outros, como os artistas que ocuparam o Prestes Maia. Aí se coloca de novo a questão: até onde esses artistas, para manterem o campo da estética, da expressão poética, desenvolvem uma pesquisa de linguagem? Até onde eles priorizam o campo da estética e até onde priorizam o campo da sociabilidade?

Muitos artistas vão dizer que não importa se a sua prática é vista como própria do campo da arte, ou do campo social, que essa não é uma questão. Mesmo que esses artistas sigam participando de exposições e fazendo o seu trabalho circular por espaços próprios do sistema da arte.

Arte é um conceito polissêmico. Cada artista pode criar a sua concepção de arte. Essa é uma possibilidade colocada pela contemporaneidade. O artista pode querer eliminar a aura artística e afirmar que ele não é um ser diferenciado, com um tipo específico de conhecimento, de produção de linguagem, etc. Então depende da concepção de arte que se tem. Eu, pessoalmente, penso que a arte é uma área ligada ao social. E é aí que o problema se coloca: até onde podemos dizer que arte é expressão poética, pesquisa, desenvolvimento de linguagem, tentando explicitar as relações sociais, e até onde ela é relação social? É uma questão em aberto. Gosto da idéia de arte como relação social não quando ela se dilui na sociabilidade, mas no campo da performance, da instalação, do vídeo, das novas tecnologias. Tenho a impressão de que nessas linguagens o campo da arte se amplia ao seu limite. Como se chegasse perto do fio da navalha. Na fronteira, estariam os ativismos.

E nas linguagens mais tradicionais, desenho, pintura, gravura, como você vê o diálogo entre arte e política?

Talvez com o desenho e a pintura a discussão seja mais intimista, reflexiva. Já na performance, nas instalações, no vídeo, ou nas novas tecnologias, me parece haver um facilitador frente às condições da sociedade contemporânea, como se essas linguagens pudessem traduzir com mais facilidade uma nova percepção.

Talvez nas linguagens mais tradicionais, a preocupação política tenda a aparecer mais como tema do que como pesquisa de linguagem.

Será que na pintura e no desenho a intensidade relacional se reduz? Por outro lado, são linguagens potentes exatamente por se distanciar daquilo que é ordinário.

Por sugerir um outro tempo de relação, de percepção. Talvez mais do que outras linguagens que se mesclam tanto à vida cotidiana, ao seu tempo, à sua dinâmica, que podem chegar a se camuflar nela. Estou pensando alto também...

Gostei do termo que você usou: camuflagem na vida cotidiana. Até que ponto a arte, quando vai em direção da camuflagem na vida cotidiana, perde a sua especificidade? Ou melhor, quando ela adquire especificidade? Mesmo com Duchamp não é qualquer coisa que é arte. Não é essa a idéia que está presente em seu trabalho. É arte aquilo que tem um conceito específico e que se diferencia do cotidiano.

Mas se por um lado podemos pensar que a camuflagem de uma experiência artística não instaura um outro tempo de relação, uma outra disposição por parte do público, por outro lado, quando lidamos com algo que é evidentemente um objeto, ou uma experiência artística, a expectativa que se tem em relação a isto também pode favorecer uma atitude pouco potencializadora dessa relação. Quero dizer que, para muitas pessoas, o fato de elas saberem que a entrega de um panfleto, por exemplo, faz parte de uma ação artística talvez faça com que elas se sintam intimidadas, distanciadas e mesmo inaptas para experienciar aquilo. Em outras palavras, talvez a camuflagem as aproxime do trabalho. É uma questão para se pensar.

A origem dessa questão está na ideia da Escola de Frankfurt de que a arte, a partir da revolução industrial, teria perdido a sua aura. Isso em função da possibilidade de reprodução técnica das imagens. Pode ser que efetivamente esteja acontecendo isso. Mas por outro lado a arte segue tendo seu tempo. Me parece que essa relação entre arte e política e entre arte e sociedade atinge o ápice nos nossos dias. Com as propostas teóricas e os desenvolvimentos de linguagem propiciados pela tradição do passado, tornamo-nos aptos a trabalhar com a arte na instância da relação social, na concepção do desaparecimento do artista e da própria obra. Por outro lado, ainda é possível apontar o que é arte e o que é artista. A Regina Silveira tem uma gravura, se não me engano, que diz que arte é enigma. Mesmo na contemporaneidade, as obras mais potentes são aquelas que mantêm esse enigma – quando a política não é o reino do enigma, mas do provável. E o reino da sociabilidade é o reino do ajudar ao outro, ideia presente no trabalho do Maurício Ianês nessa Bienal [28ª Bienal de São Paulo], que é um pouco depender da vontade do outro para sobreviver. Até onde essa questão é mais sociológica do que estética? Penso que a ideia da imprevisibilidade, da imponderabilidade, do enigma é o que distinguiria a obra de arte daquilo que é ordinário, cotidiano. Mas voltando à ideia da camuflagem, aparentemente, quando a arte entra na sociedade e se coloca como relação social, acho que se esquecem três idéias. Primeiro, a idéia do Karl Marx de que o capitalismo é hostil à arte. Segundo, a do Antonin Artaud, para quem Van Gogh não teria se suicidado. A sociedade é que o teria matado, já que é da sua natureza destruir as individualidades. E a terceira é a do Jean-Luc Godard de que a cultura é a regra, a arte é a exceção, e é da cultura querer matar a exceção. Em outras palavras, se for arte, a sociedade tende a destruir, eliminar, hostilizar. Gosto desse parâmetro.

É uma ideia forte, mas me pergunto se ela não é muito moderna, se se aplica aos dias de hoje... Porque é um pouco como se a gente acreditasse numa certa pureza do pensamento artístico, numa autonomia quase absoluta, como se o artista produzisse fora da sociedade e sua obra contivesse uma força, uma potência, que a sociedade não conseguisse abarcar e com a qual não conseguisse conviver.

É verdade. Legal você ter levantado isso. Por um lado, acho que esse entendimento se aplica fundamentalmente àqueles artistas que se embrenham na sociabilidade, se misturam às relações sociais. Por outro, o capitalismo também se tornou muito sedutor. O Fredric Jameson fala do capitalismo cultural. Segundo ele, o capitalismo hoje se reproduz em cima da beleza e da estetização do cotidiano. Então é verdade, sim, que na pós-modernidade, a arte e o artista foram incorporados pela sociedade contemporânea. A ideia de glamour e de beleza está presente desde a carteira de cigarro até o carro. Realmente há uma incorporação do estético.

Não no sentido de um desenvolvimento da sensibilidade, da percepção, da reflexão, mas no sentido da estetização das formas, é isso?

Isso. Por outro lado, também há o crescimento do mercado de arte. Os artistas hoje vendem e têm de enfrentar essa situação. Não podem fugir do mercado, mesmo porque muitos deles se dedicam apenas à sua pesquisa. Quando muito, dão aula. Por isso o artista na contemporaneidade é colocado no fio da navalha. O fato de vender não deixa de representar um perigo. Mas me parece que o artista contemporâneo tem mais instrumentos e conceitos para lidar com essa situação: a facilidade do mercado versus a necessidade de desenvolver a sua linguagem. Agora, em que medida a pressão da sociedade tende a aniquilar o artista? Talvez permanentemente, mesmo nos dias de hoje. Quando um artista vende bem, isso pode acabar reduzindo o seu potencial de causar incômodo.

Até mesmo pelo aspecto um tanto celebrativo que essa circunstância pode promover e que muitas vezes não condiz com as inquietações que estão por trás do trabalho.

Mas e por que não o aspecto celebrativo?

Boa pergunta. Talvez eu esteja sendo muito moderna. Mas, se por que não o aspecto celebrativo, então por que não a camuflagem na vida social? Entende o que quero dizer? Se concordamos que não faz sentido estabelecer regras a priori...

É verdade. Podemos pensar nessa questão juntos. Talvez por vivermos em uma sociedade de massa, imensa, complexa, heterogênea, em que local e global se misturam, é possível, sim, pensar que cabe à estética criar relações sociais em que a percepção se torne mais aguçada, em que a vida seja melhor. É quando o artista opta por criar numa esfera social uma nova trama, englobando um maior número de pessoas. Acho que isso pode ser visto até como um avanço da ideia da arte conceitual. O conceito importante nesse caso passa a ser o de criar um espaço em que as pessoas vivam melhor, em que as relações sejam mais reflexivas, afetivas, etc. Seria como criar um campo estético social. Mas aí entramos naquela ideia da vida como obra de arte. É uma das possibilidades para se pensar. É isso que você está querendo dizer?

Exato. Realmente não vejo essa aproximação extrema com a esfera social como um problema. Mais do que me preocupar com a possibilidade de uma ação artística se confundir com uma ação social, me preocupa a possibilidade de uma ação artística que tem por base uma intervenção social realizar uma intervenção danosa. Afinal, quando falamos desse tipo de prática, estamos falando de outros campos do conhecimento também.

Claro. Mesmo porque o campo das relações sociais tem especificidades. Para você entrar nele, é necessário conhecimentos, técnicas e cuidados que não necessariamente o artista tem.

Em muitos casos, o investimento do artista numa determinada comunidade é muito pontual. Então se cria uma expectativa que acaba frustrada. Mas claro que um profissional da área social não está livre de promover uma intervenção danosa também.

Verdade, mas talvez o artista carregue esse risco em maior proporção.

Normalmente, não faz muito sentido o artista produzir atentando para o efeito, ou a reação que sua obra pode suscitar. Mas nesses casos essa atenção está um pouco na base do trabalho.

O artista deve criar a partir de uma ética própria, de uma potência interna a ele mesmo, individualizada. Já o assistente social, ou o médico, produzem a partir de uma ética que está acima deles, de uma moral. E tem objetivos claros. Essa diferença é importante. Por isso acho que estamos num campo de maior risco. Mas a arte contemporânea vai nessa direção também. Não há mais limites para a experimentação estética, desde o próprio corpo até o outro. E quanto mais o envolvimento com o outro se coloca, mais a dimensão política tende a ser polêmica, porque o trabalho pode deixar de ser estético para se tornar sociológico. Quando o artista diz eu sou a relação social e a arte é relação social, não sei se estamos no campo do estético, ou no campo de uma sociabilidade diferenciada. Mas tenho muitas dúvidas quanto a isso. Estou afirmando agora o que penso por enquanto.

A origem dessa problemática, dessa relação tensa entre o campo da arte e o campo da política, estaria ligada ao processo de autonomização do campo artístico e à consequente redefinição da função da arte e do artista?

A relação entre arte e política é antiquíssima. Está presente nos gregos, na Idade Média. Mas ela se constitui como problema com as vanguardas históricas, no início do século 20. Os dadaístas, surrealistas, futuristas. E, mais tarde, com os situacionistas. É quando se coloca a crítica da arte pela arte, a arte como produto de uma sociedade burguesa que tem de ser alterada. É quando se passa a colocar em xeque a ideia de obra de arte como mercadoria e o próprio mercado. Mas são muitas as possibilidades de se pensar a relação entre arte e política. No livro [Arte e Política], levanto quatro, mas você e eu já levantamos uma dezena. O que é muito importante quando falamos em arte e política, é tentar estabelecer o contexto e a especificidade dessa relação. Pode haver uma relação em que a questão política é própria do artista, uma situação em que a dimensão política é dada mais pela leitura do trabalho, uma situação em que entram em jogo ideologias mais amplas, etc.

Mas se a gente pensar que a arte sempre vai se relacionar com um determinado contexto, nem que seja o contexto histórico e cultural do artista, não faz sentido crer na possibilidade de uma arte efetivamente autônoma.

Por um lado, é verdade que a arte é histórica, resultado da práxis humana. Trata-se de um trabalho, como diz a Hannah Arendt. Uma forma de criar conhecimento que está ligada ao contexto de produção cultural de um determinado momento. Por outro lado, ela é desenvolvimento da linguagem de um indivíduo e da linguagem de uma história. E nesse sentido o artista só pode fazer aquilo que as condições herdadas por ele permitirem. Mas ainda acredito que há um teor de autonomia na arte. No sentido de que ela diz respeito não necessariamente à história de modo geral, mas à história da arte e da linguagem.

Por mais que a história da arte e a produção artística estejam sempre vinculadas a contextos históricos...

Exato. É preciso pensar essa questão levando em conta essa ambiguidade. Existem recursos, métodos, valores, símbolos, signos que são próprios de uma linguagem, de um suporte, de uma mídia. Quer dizer, a pintura propicia isso, o desenho aquilo, o vídeo outra coisa. De fato, o artista está no interior de um determinado contexto histórico, mas a arte também tem uma especificidade. Por que Shakespeare nos toca até hoje? Porque há ali uma continuidade daquilo que é próprio da arte.

Você acredita que a arte pode interferir ou transformar a realidade social?

A arte pode transformar as realidades subjetivas. Podemos ser transformados por um livro, uma peça de teatro, uma pintura, uma instalação. Mas é uma transformação que acontece no indivíduo. A arte não tem o papel das ideologias, que mesmo elas não conseguem cumprir, de produzir transformações sociais, de fazer revoluções. A não ser a revolução da linguagem. Nesse sentido, ela é transformadora no seu próprio âmbito. Talvez a alteração da subjetividade esteja relacionada à revolução da linguagem. Amplia-se a percepção, na medida em que a arte se radicaliza na linguagem, mas não se transforma o mundo, a sociedade, a cidade, o bairro. Transformam-se as nossas subjetividades. O que muda a realidade é a história.

* Entrevista originalmente publicada na revista Tatuí n.6, em junho de 2009.

** Livro de carne, de Artur Barrio, 1979.

O museu como lugar de reflexão


Curadora do Museu de Arte Contemporânea da USP, Cristina Freire é responsável pelo resgate de um capítulo importante da história recente da arte brasileira: a atuação do MAC USP nos anos 1970 e as experiências conceituais abrigadas pela instituição. Seus estudos, que resultaram no livro Poéticas do Processo, fornecem reflexões para se pensar as relações entre o museu e a produção artística de hoje

O MAC teve um papel importante nos anos 1970 ao abrir espaço para a experimentação e para a participação de artistas. Como isso aconteceu?
Nas décadas de 60 e 70, os museus foram muito questionados por serem espaços de legitimação e poder. Os estudantes pichavam no Louvre “abaixo o museu”. Essas eram as palavras de ordem. No entanto, algumas instituições funcionaram como território de liberdade. É o caso do MAC, na época dirigido pelo professor Walter Zanini, que estava ligado à vanguarda do pensamento museológico. Lá os artistas eram convidados a criar e a participar livremente. Eles mesmos organizavam as mostras, que eram feitas quase sem dinheiro. É nessa época que se desenvolve a arte postal. Artistas dos mais variados lugares do mundo trocavam trabalhos entre si. E o MAC funcionava como um ponto importante dentro dessa rede, organizando mostras dos materiais que recebia: cartões postais, registros de performance, anotações, projetos de instalação etc. São esses trabalhos que hoje formam a coleção de arte conceitual do museu.

Essa coleção permaneceu esquecida por muito tempo pelo museu. Por quê?
Porque ainda hoje essas obras são vistas com estranheza. Não só pelo grande público, mas pelos próprios profissionais do museu. São trabalhos que, à primeira vista, não são identificados como obras, porque não se encaixam nas categorias tradicionais: pintura, escultura etc. Por isso muita gente tem dificuldade de aceitar essa produção como algo digno de fazer parte do acervo de um museu. Acontece que, se esses trabalhos não forem preservados, vamos apagar um momento importantíssimo da história da arte contemporânea. Foi essa a preocupação que me motivou a estudar esse acervo.

Qual a importância desses trabalhos para a história da arte contemporânea?
A principal questão é que eles apontam para uma virada no conceito de obra de arte, que começa a ser visto como algo em processo, que não necessariamente resulta num objeto final, acabado. É nesse momento que estão as chaves para se entender muitos aspectos da produção contemporânea, sobretudo daquela de orientação con­ceitualista. Questões como a transitoriedade, a repro­dutibilidade e a imaterialidade da obra já estavam colo­cadas ali.

A dificuldade do MAC em assimilar as propostas conceituais da década de 70 revela um descompasso do museu em relação à produção de seu tempo. O problema também é enfrentado por outras instituições brasileiras?
De maneira geral, os museus de arte no Brasil ainda operam de forma bem convencional, com dificuldade de assimilar a produção atual. Mas essa defasagem não acontece só no Brasil. O MoMA, de Nova York, ainda não conseguiu assimilar grande parte da sua coleção de livros de artista. Até hoje, ela foi muito pouco exibida. O fato é que o museu não caminha na mesma velocidade da produção artística. Trabalha com critérios e categorias que remontam ao século 19. No caso brasileiro, tem ainda outra questão: não dá para esquecer que os museus de arte foram criados depois da segunda guerra mundial, sob a influência do MoMA, e com uma bandeira ideológica muito forte de afirmação do status quo. Essa é uma postura que tem de ser revista. O museu não pode ser um espaço de afirmação. Tem de ser um lugar de crítica, dúvida, reflexão.

Muitas das obras que compõem a coleção de arte conceitual do MAC são documentos ou registros de trabalhos. Como diferenciar aquilo que é mera documentação de uma proposta artística daquilo que pode ser entendido como obra de arte?
No caso do acervo do MAC, todos os trabalhos que compõem a coleção de arte conceitual foram expostos alguma vez. Os artistas os enviavam para serem exibidos, e eles foram de fato apresentados pela instituição. Isso significa que, em um dado momento, houve um certo consenso de que aquelas peças se sustentavam como obras de arte. Para usar um conceito do Walter Benjamim, foi agregado a elas o “valor de exibição”.

É possível se aproximar da experiência que uma obra proporciona a partir de seu registro?
São aproximações totalmente diferentes. Uma é a experiência, que está ligada a um tempo e espaço específicos, e não pode ser repetida. Outra é o registro, que pode dar uma idéia do que foi a experiência direta com o trabalho, mas nunca reeditá-lo. Agora, existe a possibilidade de se reconstruir uma instalação a partir do projeto, por exemplo. Esse é um procedimento bastante utilizado hoje, já que muitos trabalhos não têm como ser armazenados pelo museu.

Em Poéticas do Processo, você afirma que tão importante quanto exibir obras contemporâneas é oferecer recursos para que as pessoas possam se relacionar com elas. Esse é outro desafio do museu?
Não só do museu, mas de todos aqueles que trabalham no circuito artístico ou estão, de alguma maneira, vinculados à disseminação da arte: escolas, jornais, revistas, televisão etc. Existe todo um código que precisa ser trabalhado. Arte contemporânea não é fácil. Não é algo que o público vê e gosta. Principalmente em função da idéia que as pessoas trazem sobre o que é uma obra de arte. São concepções que vêm do Renascimento. Quando alguém se depara com a série de telegramas I’m Still Alive, do On Kawara, por exemplo, precisa saber de todo o universo filosófico desse artista para conseguir entender aquilo como um trabalho de arte. A primeira relação com a obra não é mais estética, não tem mais a ver com a percepção visual. Sobretudo na produção de orientação conceitualista, ela é primordialmente intelectual. Você não olha e gosta. Você entende e gosta.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 64, em maio de 2005, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
** Confirmado: é arte, cartão postal de Paulo Bruscky, 1977.

“O público não quer o novo”


Para Ricardo Basbaum, artista, pesquisador, curador e organizador do livro Arte contemporânea brasileira, o estranhamento do público é um dado positivo. Um sinal de que a obra conseguiu estimular o espectador a pensar. É o que ele defende na entrevista a seguir

É comum as pessoas sentirem-se muito perdidas em relação à arte de hoje. Existe uma certa perplexidade, uma sensação de estranhamento. Por que isso acontece?
O problema é que o público não quer o novo. Quer ver confirmações do que já conhece. O que esse estranhamento mostra é que os artistas estão fazendo um esforço enorme para desafiar os hábitos perceptivos das pessoas. Isso não é ruim. Eles passam um tempão tentando formular os mesmos problemas já conhecidos, mas de outra maneira. Então, quando as pessoas sentem um estranhamento diante das obras, só estão comprovando que o artista foi bem-sucedido, porque ele não confirmou o que elas já sabiam. Mostrou outros modos de perceber as coisas.

O estranhamento faz parte do jogo?
Exatamente. Esse estranhamento surgiu com a arte moderna, quando a busca pelo novo, como se dizia na época, passou a guiar o trabalho dos artistas. Mas as pessoas costumam encarar essa sensação de forma negativa, como se ela as afastasse das obras. Só que ela pode ser vista como um valor positivo. Pode funcionar como uma provocação: fazer pensar, modificar os hábitos das pessoas, seus modos de ver o mundo... Mas é preciso que elas aceitem essa provocação. O público que melhor se relaciona com a arte contemporânea é aquele que incorpora esse estranhamento como algo que faz parte do jogo e não se sente excluído por causa dele.

Mas essa sensação tende a ser vista como um obstáculo...
A necessidade de satisfação imediata é um vício da nossa sociedade. As pessoas visitam uma exposição como se estivessem consumindo um produto. Querem sair satisfeitas. A arte, a filosofia, o cinema, a música agem na contramão dessa demanda: têm de deixar as pessoas inquietas, cheias de perguntas, insatisfeitas, querendo mais. Se a arte fosse atender às demandas da sociedade, ela acabaria. Ela só continua se seguir seus caminhos de pesquisa e não atender ao que o público quer que os artistas façam. As pessoas acham que vão entrar pela primeira vez numa mostra de arte contemporânea e se sentir familiarizadas com o que estão vendo. Para isso, é preciso construir hábitos, conhecer um pouco de história, ler sobre o assunto, visitar exposições. Quem visita pela primeira vez uma mostra tem de ir aos poucos. Se entrarmos num congresso de física contemporânea, também não vamos entender nada. Mas não vamos acusar os pesquisadores de estarem perdendo tempo ou apenas falando entre si. O problema é que, no Brasil, a maioria da população não tem acesso a uma educação razoável, e isso gera uma enorme falta de contato com a arte. Mas para além da educação, há todas as outras mediações que envolvem os trabalhos. Geralmente se aborda essa questão da incompreensão do público como se a relação das pessoas com as obras fosse direta. O problema, portanto, estaria nos trabalhos. Mas essa relação é mediada por muitos fatores: pelas instituições de arte, pela imprensa...

Fale um pouco sobre essas mediações.

As mediações são tudo aquilo que nos ajuda a nos aproximar das obras: a curadoria da exposição, a montagem, os serviços educativos, a política das instituições. E também o jornal, a tevê... Você recebe informações aobre uma exposição – quando ela é de grande porte, envolve muitos patrocinadores – bem antes de visitá-la. Vê cartazes, anúncios, reportagens. Mas essas mediações podem tanto acelerar como retardar a aproximação do público. O Jornal Nacional, por exemplo, dificilmente vai estimular a capacidade crítica das pessoas, nem incentivar uma inquietação. Ele passa leituras prontas. Por isso, a verdadeira relação com a obra talvez seja um privilégio daquele que eu chamo de espectador. O público em geral fica no meio do caminho.

Qual a diferença entre público e espectador?
Falar do público é como falar do povo. É uma espécie de ficção, porque ele não existe como algo monolítico. É composto de vários grupos, com interesses diversos, com percursos culturais diferentes. Falar em espectador é falar de uma categoria mais específica, mais aberta ao contato com a obra. A relação com a arte parte de uma vontade. Ninguém é obrigado a ver obras de arte. É uma relação que pressupõe um engajamento, um esforço, uma abertura para se confrontar com aquilo que é diferente. É por isso que eu gosto da idéia de espectador, que seria aquele que incorpora essa vontade de se aproximar da obra. Tem uma atitude mais crítica e já entende um pouco o papel das mediações.

Você falou de mediações que retardam a aproximação das pessoas em relação às obras. Que mediações podem acelerar essa aproximação?
Os serviços educativos dos museus são um exemplo. Eles podem indicar caminhos, fornecer informações e ajudar o público a se familiarizar com as questões da arte. Mas não podem construir essa vontade de se relacionar com as obras. A vontade é fruto de um percurso. Tem a ver com educação, com os hábitos que as pessoas cultivam. Muitos turistas brasileiros vão a Nova York e visitam o MoMA sem nunca ter ido ao museu de arte da sua cidade. Em Nova York, eles vão porque aquilo está dentro de um pacote turístico. Eles fruem o museu como consomem qualquer outra atração da cidade.

Para ser espectador, é preciso ter uma relação mais contínua com a arte?

É, mas eu também acredito bastante na idéia de curto-circuito. Existem pessoas que fazem caminhos mais curtos até as obras. Entram em contato com os trabalhos e se sentem tocadas por eles. São pessoas mais sensíveis ou mais atentas que a maioria. Todo trabalho de arte contundente, intenso e interessante pode produzir curtos-circuitos, queimar etapas de mediações. A obra de arte não é só mediação. Ela também pode ser imediata.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 57, em julho de 2004, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
** /módulo de transatravessamento do artista-etc/, 2002, de Ricardo Basbaum, apresentado no contexto da 24ª Bienal de São Paulo

"Arte é para ser compartilhada"


Mônica Nador deixou o ateliê em 1995 para desenvolver pinturas murais junto a comunidades carentes. Para a artista, mais importante que fazer arte é compartilhar o seu conhecimento com o maior número de pessoas possível.

O que a levou a sair do ateliê para trabalhar em comunidades carentes?
Depois de quase dez anos pintando, me vi descontente com o que fazia. Era pintora e criava coisas superlindas, mas não me sentia confortável com a minha posição na sociedade. Ao mesmo tempo, não tinha contato com nenhum tipo de pensamento que pudesse me mostrar outras possibilidades. Então, em 1995, decidi voltar a estudar. No mestrado, li um texto do Douglas Crimp, The End of Painting. A partir daí, não consegui mais pintar. Me dei conta de que o maior objetivo que eu poderia alcançar com a minha arte era ter uma tela armazenada num museu. Isso me fez entrar em pane. Eu sempre tive a idéia de que a minha arte tinha que comunicar, ser fácil, acessível. Acho um saco esse negócio de arte muito cabeça, muito intelectualizada, distante das pessoas comuns. Nunca concordei com a idéia de que arte é uma coisa para poucos. Arte é para ser compartilhada. Por isso, eu achei que o negócio era pegar as minhas pinturas e sair para a rua, levar a minha arte para fora do museu. Há um pensador italiano que diz uma coisa interessante: mais importante que uma descoberta científica de ponta é democratizar essa descoberta. Na arte é a mesma coisa. O que adianta fazer um trabalho de ponta se as pessoas não entendem? Para que serve esse conhecimento? Para ser armazenado num museu?

Então a atividade nas comunidades surgiu mais de uma vontade de ampliar o público do que de incluí-lo no teu processo de trabalho?
Sim. Naquela época, eu ainda não tinha percebido que levar o meu trabalho até as pessoas continuava sendo uma ação excludente. Aos poucos, comecei a entender que o legal não era chegar nos lugares e mostrar as coisas lindas que eu sabia fazer. O legal era dividir aquele saber. A Regina Silveira, que me orientava no mestrado, me perguntava muito isso: “Quem disse que beleza é aquilo que você acha que é?”. Comecei a entender que eu tinha de usar o repertório local para construir as imagens, que eu precisava trabalhar junto com as pessoas do lugar.

E como elas começaram a participar?
A primeira vez foi numa cidadezinha chamada Coração de Maria (BA). Eu ia pintar um coreto numa praça e botei a molecada para ajudar. Mas ali as pessoas ainda eram só mão-de-obra. Elas ajudavam a pintar, mas não a pensar o trabalho. Na segunda vez, resolvi ampliar a participação do público. Organizei uma oficina, e as pessoas desenharam quase todos os stencils [moldes vazados usados para pintar tecidos, paredes etc] que a gente usou na pintura. Quando trabalhei num assentamento do MST, em Piratininga (SP), a participação foi ainda maior. Não usei nenhum desenho meu, e as pessoas decidiram bastante sobre o trabalho. Tanto que eu quis pintar umas faixas amarelas na parede e elas não deixaram. Disseram que ia estragar a paisagem. Claro que eu poderia ter pintado, mas optei por deixá-las conduzirem as coisas, por abrir mão do meu lugar.

Naquela época, você ainda passava pouco tempo nos lugares onde trabalhava. Como veio a idéia de se estabelecer no Jardim Miriam?
Cada vez mais, eu comecei a me interessar por desenvolver um trabalho de educação. Mas para isso precisaria ficar mais tempo nas comunidades. Só assim poderia ensinar as pessoas a usar aquele conhecimento para ganhar um troco pintando casa, fazendo camiseta, pano de prato etc. Tenho esse sonho de ver o meu trabalho transformado em profissão. A gente precisa explorar o potencial pedagógico da arte, a capacidade de transformação que ela tem. Quando decidi ir para o Jardim Miriam, foi com essa idéia de realizar um trabalho educativo, de contaminar as pessoas com arte. Primeiro, eu trabalhei numa associação beneficente, mas depois de três meses eles me demitiram e eu acabei me juntando com a artista Lucia Koch para montar o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac). A gente ficou um ano batalhando, e só no começo deste ano conseguimos alugar um espaço e começar as atividades.

O que é o Jardim Miriam Arte Clube?
É um espaço de arte que fica no Jardim Miriam, um bairro de periferia de São Paulo onde vivem umas 300 mil pessoas. Quem coordena o Jamac sou eu, a Lucia Koch e o Fernando Limberger de artistas plásticos e o João Haddad, que é cientista político. Esses são os quatro cabeças, mas tem também o Marcelo Zocchio, que é fotógrafo, e o Gerson de Oliveira, que é designer. Cada um oferece um tipo de oficina, tudo gratuito. Mas a idéia é que elas sejam bem informais. A gente quer que o Jamac seja um ponto de encontro: um lugar aonde as pessoas possam ir para conversar, respirar uma coisa diferente. O objetivo maior não é dar aula, mas trabalhar no bairro junto com os moradores: pintar paredes, intervir na arquitetura...

Como acontecem as pinturas nas casas dos moradores?
O trabalho é totalmente coletivo. Eu dou sugestões, mas todo o mundo ajuda a decidir. Quando a gente combina de pintar uma casa, sempre deixo claro que só vou ensinar a técnica. Quem vai pintar são eles.

Há quem diga que o teu trabalho teria perdido o caráter autoral e se transformado em uma atividade de cunho mais assistencial. Como você vê essas críticas?
Em primeiro lugar, o conceito de autoria que a gente tem hoje é um conceito que favorece muito o mercado. É aquele do autor gênio, solitário, louco, diferente, que faz coisas que somente ele consegue fazer. Mas o que faz um artista ser artista é sempre um somatório de experiências, de conhecimentos, de idéias. Por isso, quando falam que o que eu faço não é arte, eu não ligo a mínima. Acho esse tipo de crítica uma caretice. Por que, então, me chamam para participar de exposições? Por que me convidam para representar o Brasil na Bienal de Sidney, por exemplo? E tem mais: a concepção de arte que a gente tem hoje não é a única possível. Ela vem do Iluminismo. Só tem 200 anos. Quando eu me dei conta disso, percebi que quem manda sou eu. Eu sou o artista. Sou eu quem define como a arte tem de ser. E eu não quero mais que a arte seja como ela é hoje, por isso estou dando uma outra função para ela: uma função pedagógica, transformadora. Não consigo tocar o meu trabalho sem olhar para o país onde vivo: para o desemprego, para a falta de educação. Não quero educar as pessoas para ter mais público para a arte, mas para que elas mesmas possam criar, se expressar, ser cidadãs.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 60, em novembro de 2004, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
** Imagens de pinturas murais realizadas por Mônica Nador em comunidades carentes.

“O trabalho coletivo desafia o artista”


Mario Ramiro já montou grupo de intervenção urbana, espaço cultural e até banda de electro-punk. Artista multimídia e professor da USP, ele afirma que o trabalho coletivo em arte exige muito desprendimento e disposição.

Sua primeira experiência de trabalho colaborativo foi com o grupo 3NÓS3, ao lado de Rafael França e Hudinilson Jr.. Você pode falar um pouco sobre ela?
No final dos anos 1970 e começo dos 1980, existia uma movimentação em direção às ruas muito grande. Era o período de transição da ditadura para a democracia, e os movimentos sociais tomavam conta das cidades. É nesse contexto que o 3NÓS3 começou a atuar, desenvolvendo projetos de intervenção urbana nas ruas de São Paulo. Junto com ele, surgiram outros grupos, que também faziam atividades nas ruas, sempre com uma idéia de atuar fora do circuito comercial e institucional e investir numa experimentação de linguagem. O interessante é que, como a maioria desses grupos era formada por estudantes da ECA, todo mundo se conhecia, e a gente acabava trabalhando em colaboração uns com os outros. Chegamos a criar uma espécie de cooperativa de coletivos, que se chamou CLE, Centro de Livre Expressão. Ali, você percebia um traço que reaparece com força nos dias de hoje, que é esse trabalho coletivo de coletivos. Muitas das nossas intervenções, principalmente aquelas de grande porte, eram executadas com a ajuda de outros grupos.

Um traço marcante do grupo é que vocês sempre comunicavam à imprensa a realização das intervenções. Por quê?
Primeiro, porque a imprensa funcionava como um meio de proteção contra a polícia. A presença de jornalistas, principalmente de câmaras de tevê, inibia bastante qualquer eventual repressão policial. O outro motivo era a divulgação das intervenções, que normalmente aconteciam de madrugada e sempre eram retiradas no máximo até a hora do almoço. Ou seja: a maioria das pessoas não via aqueles trabalhos instalados na cidade. O terceiro motivo é que a gente via na imprensa uma forma de documentar os trabalhos a um custo muito baixo. A gente recortava as matérias e com elas fazia umas pequenas publicações, que funcionavam como catálogos do grupo.

Além de atuar no 3NÓS3, você trabalhou em parceria com outros artistas mais vezes ao longo da sua trajetória. Você pode falar um pouco sobre essas experiências?
Quando o 3NÓS3 acabou, em 1982, trabalhei com o Eduardo Kac por um tempo, criando projetos de telecomunicação. Nessa época, as experiências com arte e tecnologia estavam recém começando no país. Minha terceira expe­riência foi com um grupo de músicos, antes de eu ir para a Alemanha. A gente fazia trilhas sonoras para filmes inexistentes. A idéia era que um dia elas pudessem ser integradas a uma peça ou filme. Já na Alemanha, veio o Autopsi, que nunca criou trabalhos em conjunto, apesar de ter tido projetos nesse sentido. O que a gente fazia era organizar mostras coletivas. Atualmente, a distância tem dificultado o trabalho em parceria, mas a gente segue com o grupo. Hoje, faço parte de uma banda de electro-punk, que tem trabalhando muito com questões da cidade. Nossas músicas são feitas a partir desses papéis que as pes­soas te entregam na rua: anúncio do pai nhonhô, cartão de motorista de táxi, adesivo de garota de programa etc. A gente pega esses despachos da rua e dá voz a uma linguagem que normalmente é identificada como lixo.

O que o trabalho coletivo traz de particular?
Ele exige uma disposição e um desprendimento muito grande. Toda vez que você lança uma idéia no grupo, ela deixa de ser sua e passa a ser de todos. Ela sempre vai sofrer adaptações. É aí que você tem de saber trabalhar com a sua vaidade e desenvolver um espírito mais coletivo. Você precisa estar aberto a compartilhar as suas idéias e a sua visão sobre a arte. E tem de aceitar que o seu ponto de vista seja questionado o tempo inteiro. O trabalho coletivo desafia o artista. Testa os seus limites. Mas sempre vai alimentar a sua produção.

Há sempre uma negociação envolvida, não?
Sempre. A palavra negócio significa exatamente a negação do ócio. Por isso o termo se aplica perfeitamente ao momento de execução do trabalho. Ainda mais quando ele se dá de forma colaborativa. Agora, tem uma parte ante­rior a isso, que é o ócio coletivo. Normalmente os grupos nascem de eleições pessoais, ou seja, de afinidades com pessoas com as quais você divide o ócio. Então existe uma negociação que acontece no momento da criação, mas existe também o momento do devaneio, do ócio compartilhado, que é imprescindível a esse tipo de trabalho.

Outro projeto coletivo que você desenvolveu foi a criação da Oficina Virgílio, hoje Oficina Mirante.
A diferença é que nesse caso a gente não forma um grupo de criação, mas um grupo de trabalho envolvido com um projeto cultural. A iniciativa partiu de três artistas, eu, Marco Giannotti e José Spaniol, junto com uma produtora, a Ana Helena Curti. O projeto inicial era montar um ateliê-escola, um espaço que oferecesse um formato de ensino diferente do modelo acadêmico. Algo um pouco inspirado no que foi a Bauhaus ou a atividade educacional dos russos no começo do século passado. Só que, além das oficinas, cada vez mais o espaço está agregando outras atividades: palestras, mostras de vídeos, encontros com artistas, apresentação de músicos. Temos também um projeto de criar uma editora de livros de artista.

Esse investimento em iniciativas que fogem à produção individual de obras, como a formação de coletivos, criação de espaços, agenciamento de mostras etc, é um dado do artista contemporâneo?
Não dá para generalizar, mas esse é um elemento que vem aparecendo bastante na atividade de muitos artistas. Todos esses projetos que eu mencionei, por exemplo, não são nada originais. Tem muita gente fazendo exatamente a mesma coisa. Existe, sim, por parte dos artistas, um interesse em participar cada vez mais da dinâmica cultural. E não há dúvidas de que o nosso campo de atividade já se expandiu. Hoje você vê artista fazendo pesquisa na universidade, dirigindo espaços, desenvolvendo projetos culturais, fazendo curadorias. Existe uma demanda para esse tipo de atua­ção. Tudo isso é muito positivo. Eu e o José Spaniol costumamos dizer que o artista tem uma “pegada” diferente do crítico, do historiador da arte, do curador. Ele pesquisa, administra, analisa as mesmas questões, mas de um ponto de vista de quem também produz.

O que vem impulsionando esse tipo de atuação?
Por um lado, acredito que isso tem a ver com a formação dos artistas. Na minha geração e na geração que vem vindo aí, a maioria tem formação universitária. Mesmo aqueles que não têm intenção de seguir carreira acadêmica, estão procurando a universidade para se aprimorar. Essa experiência talvez revele aos artistas potencialidades que eles desconheciam, como o talento para a escrita e a pesquisa, por exemplo. Ou o talento para a elaboração de projetos, para a atividade em grupo etc. Por outro lado, tem artistas que não estão envolvidos com a universidade, mas têm uma vontade muito grande de interferir no processo sociocultural brasileiro. É o caso de muitos coletivos que trabalham com ONGs e comunidades de periferia. O artista começa a descobrir a extensão e a força que a sua atividade pode ter. Começa a perceber que a arte também pode ser transformadora. E que talvez seja possível contribuir, por meio dela, para uma pequena mudança de mentalidade ou de percepção sobre as coisas. Principalmente no Brasil, é impressionante a disposição que os artistas têm tido de interferir no processo cultural. Isso é muito bacana, porque rompe com aquele estigma do artista de ser uma espécie de vadio chique, elegante.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 67, em agosto de 2005, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
* Intervenção realizada pelo grupo 3NÓS na Av. Paulista, em São Paulo, em 1979.

"Tem de tudo, mas não vale tudo"


O crítico, curador e professor da USP Agnaldo Farias afirma que a produção artística nunca foi tão plural quanto hoje, mas que essa situação não justifica o “vale-tudo” que muitos afirmam existir na arte contemporânea.

No livro Arte brasileira hoje, você compara a produção brasileira à imagem de um arquipélago, em que cada obra seria uma ilha com uma atmosfera específica e uma vegetação particular. Cada artista cria o seu próprio estilo?
A palavra estilo remete à idéia de solução formal. E não estamos mais discutindo soluções formais. Estamos falando em tipos de procedimento. Você pode ter procedimentos homólogos com soluções formais diferentes. Por isso não dá para dizer que cada artista cria um estilo, ou seja, uma solução formal recorrente. Mas dá para dizer que cada artista cria um universo próprio. É impossível falar em correntes na arte de hoje. Muito menos em uniformidade. A fragmentação é um dado do nosso tempo. Daí a imagem do arquipélago. No início do século, você até identificava vertentes, mas hoje é complicado fazer reduções. Mesmo no caso brasileiro, que ainda está longe de ter um tremendo panorama.

Estamos vivendo o período mais pluralista da história da arte?
Sem dúvida. Nunca passamos por um momento como este. É uma característica que vem se desenvolvendo desde os anos 1950 e se acentua nos anos 1960, quando as fronteiras entre as expressões artísticas se tornaram mais fluidas. Antes, cada linguagem estava voltada para si mesma: a pintura discutia elementos estritamente pictóricos, a escultura questionava elementos estritamente escultóricos e assim por diante. Jackson Pollock, por exemplo, discutia o gesto, a superfície, a maneira como a tela era colocada no chão. E isso também acontecia na literatura, quando ela se voltava para o problema do foco narrativo. Com a crise da arte moderna, a gente passa a ter expressões que não são nem escultura, nem pintura, nem desenho, mas carregam vários desses elementos. É o caso das combine paintings, do Rauschenberg, que não são nem pintura, nem escultura. Ou das peças do Merce Cunningham e do John Cage, que não são nem música, nem teatro. Hoje em dia, não há mais limites claros entre as expressões artísticas. Só que isso nem sempre foi assim. Até o século 19, havia cânones tão fortes, que era praticamente proibido desobedecê-los. Mas isso não significa que as expressões clássicas não sobrevivam. Elas têm, inclusive, demonstrado grande vitalidade. A pintura, por exemplo, atravessa um excelente momento.

Nem tudo que é produzido hoje é arte contemporânea. O termo não designa nem uma questão temporal, nem um padrão artístico, dada a diversidade de obras. O que ele designa então?
Essas categorias são sempre complicadas porque nunca dão conta de definir as coisas. Mas o que vale é o seguinte: nem toda criação propicia um estado de suspensão ou uma ruptura. Eu cobro da arte que ela me inquiete. Isso poderia ser uma definição: contemporâneos são os trabalhos que não são acomodados. Dentro dessa lógica, Goya é profundamente contemporâneo. Continua difícil olhar uma obra dele. Ficar diante de um Velázquez, não é mole. De um Turner, também não. Há obras que perduram, não perdem o vigor. Aí você me pergunta, mas Da Vinci é contemporâneo? Eu acho que é. Por isso eu diria que nem tudo que é feito agora é arte contemporânea, mas nem tudo que foi feito anteriormente é arte do passado. Tem muita gente que faz arte hoje por diletantismo. Eu acho bacana, bonito. Mas para quem faz. Não dá pra colocar na categoria de arte contemporânea.

Por quê?
Porque a arte contemporânea tem que ter um comprometimento com o nosso tempo, as nossas questões. O artista tem que ter uma posição em relação ao mundo em que vive, não pode se esquivar dele. E isso pode acontecer quando ele faz uma instalação ou uma pintura. Não existe um suporte que seja melhor ou mais contemporâneo que o outro. A incorporação das novas mídias é natural. Mas não é porque a tecnologia é atual que dali sairão comentários sobre o nosso tempo.

E a arte popular? Embora haja manifestações muito interessantes, ela também fica de fora daquilo que se convencionou chamar de arte contemporânea.
O Arthur Bispo do Rosário é um artista maior. O Cartola e o Nelson do Cavaco também. Não tem essa de arte popular. Tem boa arte e tem aquilo que não é arte, e fim de papo. Tem obra de barro que é artesanato, como também tem pintura que é artesanato. Faríamos muito bem se nos livrássemos desse preconceito e olhássemos mais para essas manifestações. A gente tem muito a aprender com elas.


Uma das críticas que se faz ao pluralismo é que ele cria uma espécie de vale tudo e acaba dando margem a trabalhos de qualidade discutível.
Vale tudo coisa alguma. Isso não existe. A obra tem que ter inteligência, solidez. Sempre vai haver o trigo e o joio: trabalhos que têm qualidade e trabalhos que não têm. Nossa tarefa é separá-los. É claro que às vezes as fronteiras ficam borradas. Freqüentemente eu me vejo sem palavras diante de alguns trabalhos e também vejo artistas sem palavras. Os leigos ficam dizendo que não entendem, mas muitas vezes o crítico também não entende. Todo mundo é público em última análise.

Ficou mais difícil avaliar?
Em primeiro lugar, ficou mais difícil acompanhar a produção. E é claro que ficou mais complicado separar aquilo que é arte daquilo que não é. Antigamente, os artistas trabalhavam a partir de categorias definidas: pintura, escultura, gravura, desenho. Era mais fácil estabelecer parâmetros. Hoje você tem que ser mais flexível, mais atento e tem que dominar mais áreas, porque são mais elementos que estão em jogo. E tem aquela velha questão: tudo que está mais próximo é mais difícil de avaliar. No futuro teremos parâmetros bem mais claros. Muitas obras já serão clássicas.

E quanto ao mercado de arte? Essa diversidade não favorece um certo oportunismo?

Claro. É possível criar fenômenos que, mesmo que não se sustentem por muito tempo, vendam muito numa determinada época. São operações comerciais mesmo. Mas tem gente com talento e gente sem talento. Só não dá pra nivelar todo mundo por baixo e achar que ninguém presta, porque o mercado comanda tudo. O mercado está interessando em novidade e sempre estará. E novidade vendável, indiscutivelmente. Agora eu ainda acho mais difícil vender um boi cortado ao meio ou uma cabeça de sangue do Marc Quinn do que vender uma pintura. Especulação existe e sempre haverá de existir. Mas não dá pra falar disso no Brasil. Que mercado nós temos aqui? Quantos colecionadores existem em Porto Alegre além do Justo Werlang? Em São Paulo, tem meia dúzia. O mercado de arte contemporânea ainda não emplacou no país. Qual é a capacidade que ele tem, portanto, de ficar especulando? Nenhuma. O Brasil ainda não faz parte desse jogo. Nós mal conseguimos entrar. São poucos os artistas daqui que circulam lá fora.


* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 58, em agosto de 2004, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
** Trabalho de Arthur Bispo do Rosário.

Por uma arte política


As novidades são grandes, e a expectativa também. Dedicada ao tema “como viver junto”, a Bienal de São Paulo chega à 27ª edição, trazendo uma série de reformulações em seu modelo curatorial. A começar pela escolha da curadora. Eleita por meio de um processo inédito na história da instituição, baseado na solicitação de anteprojetos a quatro profissionais, Lisette Lagnado pôs fim às representações nacionais, criou um programa de residências que trouxe dez artistas estrangeiros para trabalhar no Brasil e incorporou ao projeto uma série de seminários preparatórios que antecipam o debate sobre a exposição. “Enquanto normalmente a Bienal se guarda como uma esfinge, como um enigma, até a inauguração da mostra, os seminários criam uma transparência: vamos falar deste artista ou daquele outro, de arquitetura e reconstrução, de comunidades e mutirões. Tudo aos poucos vai se revelando ao público”, explica Lagnado, que assina a curadoria ao lado de cinco co-curadores: Adriano Pedrosa, Cristina Freire, José Roca, Rosa Martinez e Jochen Volz.

O evento propõe uma reflexão sobre a construção de espaços compartilhados, práticas colaborativas e projetos coletivos. A proposta é investigar as possibilidades de coexistência e convivência no mundo contemporâneo. Com 119 artistas provenientes de cerca de 55 países, entre nomes consagrados e expoentes da nova geração, a 27ª Bienal de São Paulo aposta em um projeto de marcado viés político e recoloca em pauta o debate sobre o lugar e o papel da arte na sociedade. Na entrevista a seguir, Lisette Lagnado fala sobre as idéias que guiaram a concepção da mostra, comenta as mudanças implementadas e explica por que acredita na arte enquanto propositora de mudanças na vida social.

O processo de escolha do curador-geral da 27ª Bienal de São Paulo contou com um procedimento inédito na história da instituição, baseado na solicitação de anteprojetos a quatro profissionais. Qual o impacto da novidade na concepção e organização da mostra?
O impacto é enorme e maravilhoso. Nunca houve tamanha respeitabilidade pública para o trabalho de um curador, sua função de exercer a crítica e de cumprir um projeto conceitual. Sou uma mulher de sorte.

Uma das novidades desta edição é a abolição das representações nacionais, o que oferece uma independência maior à equipe curatorial no desenvolvimento do projeto. Como tem sido a primeira experiência com esse formato? Os países seguem oferecendo apoio financeiro aos artistas participantes?
É de fato uma experiência-piloto e já está sendo reconhecida como medida necessária para o desenvolvimento de um projeto livre das interferências externas, como podemos atestar no anúncio feito pela próxima edição da Bienal do Mercosul, que inclusive adotará um programa de residências artísticas também. Quero deixar claro que mantivemos o diálogo com todos os Institutos e as Fundações de Cultura que costumavam apoiar artistas para a Bienal de São Paulo e conseguimos apoios consideráveis e uma compreensão generosa do significado da palavra “nacionalidade”. A Alemanha e a Holanda, por exemplo, estão prestigiando artistas que residem em seus países, mesmo tendo origens diversas: espanholas, argentinas, do Benin, etc. Mas fomos propositores do começo ao fim. A Bienal de São Paulo deixou de ser um guichê.

Como a equipe de co-curadores vem atuando no desenvolvimento e execução do projeto?
Trabalhar sozinho é muito chato. Considero meus co-curadores verdadeiros aliados, que me trouxeram sua experiência profissional na escolha dos nomes, que me orientaram na conduta de casos mais delicados, que afinaram detalhes do conceito junto comigo e foram decisivos no programa de seminários e, sobretudo, na concepção das publicações.

O tema da 27ª Bienal "como viver junto" tem duas inspirações importantes: as reflexões de Roland Barthes e o pensamento desenvolvido por Hélio Oiticica por meio de sua obra. Como as idéias e conceitos trazidos por esses nomes conversam com o tema da exposição?
A questão é vasta. Primeiro, é preciso deixar claro que são dois autores de alma muito distinta. Barthes, delicado. E Oiticica, anarquista. Como combinar isto?, você me perguntaria. Na realidade, é muito mais o Programa Ambiental de Hélio Oiticica, a partir de seus projetos construtivos que caminharam para o Parangolé – que ele dizia ser um “programa para a vida” –, que norteou a concepção do projeto. O título veio a posteriori. Eu havia lido os seminários de Barthes e encontrei uma maneira de confrontar a atualidade de um pensamento de natureza utópica no mundo globalizado.

Quando você fala na possibilidade de confrontar a atualidade de um pensamento de natureza utópica no mundo atual, você está falando em investigar a possibilidade de se investir em algum tipo de "espírito utópico" nos dias de hoje, especialmente por meio da arte?
Sim, alguns artistas ainda trabalham na direção de uma utopia, de uma sensibilidade partilhada, conjunta. Outros, entretanto, já não acreditam mais que este projeto seja possível. Acham que os conflitos são intransponíveis.

Você pode falar um pouco mais sobre o Programa Ambiental de Hélio Oiticica e sobre como ele norteou a concepção do projeto?
A noção de Programa Ambiental remonta ao início dos anos 1960, quando Hélio Oiticica concebeu o projeto "Cães de Caça", maquete que nunca foi construída e que previa concertos de música ao ar livre. Mas é com o Parangolé que o artista se dá conta de que a participação do público é inevitável e de que ele teria de fazer seus projetos fora da instituição artística – museus ou galerias. Entre 1964 e 1969, Hélio escreve muitos textos que vão afinando este conceito. Nos anos 1970, já morando em Nova York, o "ambiental" era uma dimensão que muitos artistas estavam explorando em níveis diferentes, como Ana Mendieta, por exemplo, que também foi convidada para a 27ª Bienal. O projeto proposto para esta Bienal de São Paulo procura registrar uma tendência de incluir o espectador na obra. O que Oiticica chamava de "artista construtor" é um sinal recorrente: a vontade de transformar a percepção estética e sensorial que o não-artista tem diante de uma obra. Isto se dá por meio de um tipo de participação, seja ela direta ou indireta.

Embora tenha inspirado a concepção da mostra, você optou por não expor trabalhos de Hélio Oiticica. O artista figurará na exposição apenas por meio de filmes e de textos de sua autoria, publicados em um dos livros da Bienal. Por que essa opção?
Esta opção provêm do fato de que me parecia que a obra de Oiticica já havia sido suficientemente mostrada em Bienais mas que, entretanto, sua teoria inventiva, dos anos 1970 notadamente, não havia nunca recebido o devido respeito da crítica. “Como pensar junto com Hélio?” é uma pergunta em aberto.

O tema "como viver junto" e a seleção de nomes desta 27ª edição - que traz um bom número de artistas e projetos artísticos coletivos com trabalhos de evidente caráter social e político - apontam para uma mostra de viés político. Por que essa escolha?
Para mim, a escolha não poderia ser diferente. Eu queria ter sido antropóloga quando cheguei no Brasil, e o primeiro artista de Bienal que eu conheci fazia “arte sociológica”. Acompanhei pintores importantes, como Iberê Camargo, mas o compromisso direto do artista na vida social me interessa muito mais. Talvez porque eu queira, no fundo, que este mundo melhore... E ele não melhora! A guerra do Líbano estourou no meio da Bienal!

É exatamente este o ponto que você mais criticou em relação à 26ª Bienal, de curadoria de Alfons Hug: o descompasso em relação ao debate artístico internacional, pautado no tratamento político da arte. Foi esse debate que você buscou trazer para a 27ª edição?
Hug cumpriu um papel importante, convidou artistas que pouca gente realmente viu. O problema é a escala gigantesca da Bienal. Eu tive a sorte de poder propor um projeto. E os seminários ressaltaram que, para mim, não há compreensão dos fenômenos estéticos sem debate, sem uma certa discursividade em torno das práticas artísticas.

No anteprojeto apresentado à Fundação Bienal, o Acre figurava como um dos "blocos" temáticos da exposição. Como o Acre entrará, de fato, na mostra e por que a escolha desse Estado como um dos eixos temáticos da 27ª Bienal?
Os tais “blocos” foram dissolvidos nas discussões curatoriais e o título “como viver junto” veio para nos ensinar questões relativas a cohabitação, fronteiras, vizinhanças, escolhas sexuais, políticas; diferenças entre asilo e exílio; noções de pátria, de imigração e trabalho. A história da anexação do Acre ao Brasil sintetiza tudo isto. É o Estado mais politizado que eu visitei. O Acre recebeu três artistas residentes de países muito diferentes, e um artista que foi por conta própria, movido pela curiosidade. Além de reconhecermos Hélio Melo como pintor dos mitos da floresta, creio que a 27ª Bienal deixou sementes de contemporaneidade em Rio Branco, por meio de workshops que vão estimular os artistas locais.

Outra novidade desta edição é a realização de seminários "preparatórios" em torno do tema geral da mostra. Qual era a proposta desses eventos e que papel eles têm tido?
A ressonância destes seminários “preparatórios” é maior do que eu esperava. Enquanto normalmente a Bienal se guarda como uma esfinge, como um enigma, até a inauguração da mostra, os seminários criam uma transparência: vamos falar deste artista ou daquele outro, de arquitetura e reconstrução, de comunidades e mutirões. Tudo aos poucos vai se revelando ao público. Uma Bienal, como já disse, é um evento gigantesco. E não há como apreendê-lo de uma vez só. Outro dado importante para mim era não somente romper essa barreira temporal, mas também explicitar que o artista pensa, tem estratégias discursivas, estabelece trocas com professores de várias disciplinas.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 78, em setembro de 2006.
** Cartaz da série Gráfica social, de Minerva Cuevas, disponível na rede para uso público.