“O público não quer o novo”


Para Ricardo Basbaum, artista, pesquisador, curador e organizador do livro Arte contemporânea brasileira, o estranhamento do público é um dado positivo. Um sinal de que a obra conseguiu estimular o espectador a pensar. É o que ele defende na entrevista a seguir

É comum as pessoas sentirem-se muito perdidas em relação à arte de hoje. Existe uma certa perplexidade, uma sensação de estranhamento. Por que isso acontece?
O problema é que o público não quer o novo. Quer ver confirmações do que já conhece. O que esse estranhamento mostra é que os artistas estão fazendo um esforço enorme para desafiar os hábitos perceptivos das pessoas. Isso não é ruim. Eles passam um tempão tentando formular os mesmos problemas já conhecidos, mas de outra maneira. Então, quando as pessoas sentem um estranhamento diante das obras, só estão comprovando que o artista foi bem-sucedido, porque ele não confirmou o que elas já sabiam. Mostrou outros modos de perceber as coisas.

O estranhamento faz parte do jogo?
Exatamente. Esse estranhamento surgiu com a arte moderna, quando a busca pelo novo, como se dizia na época, passou a guiar o trabalho dos artistas. Mas as pessoas costumam encarar essa sensação de forma negativa, como se ela as afastasse das obras. Só que ela pode ser vista como um valor positivo. Pode funcionar como uma provocação: fazer pensar, modificar os hábitos das pessoas, seus modos de ver o mundo... Mas é preciso que elas aceitem essa provocação. O público que melhor se relaciona com a arte contemporânea é aquele que incorpora esse estranhamento como algo que faz parte do jogo e não se sente excluído por causa dele.

Mas essa sensação tende a ser vista como um obstáculo...
A necessidade de satisfação imediata é um vício da nossa sociedade. As pessoas visitam uma exposição como se estivessem consumindo um produto. Querem sair satisfeitas. A arte, a filosofia, o cinema, a música agem na contramão dessa demanda: têm de deixar as pessoas inquietas, cheias de perguntas, insatisfeitas, querendo mais. Se a arte fosse atender às demandas da sociedade, ela acabaria. Ela só continua se seguir seus caminhos de pesquisa e não atender ao que o público quer que os artistas façam. As pessoas acham que vão entrar pela primeira vez numa mostra de arte contemporânea e se sentir familiarizadas com o que estão vendo. Para isso, é preciso construir hábitos, conhecer um pouco de história, ler sobre o assunto, visitar exposições. Quem visita pela primeira vez uma mostra tem de ir aos poucos. Se entrarmos num congresso de física contemporânea, também não vamos entender nada. Mas não vamos acusar os pesquisadores de estarem perdendo tempo ou apenas falando entre si. O problema é que, no Brasil, a maioria da população não tem acesso a uma educação razoável, e isso gera uma enorme falta de contato com a arte. Mas para além da educação, há todas as outras mediações que envolvem os trabalhos. Geralmente se aborda essa questão da incompreensão do público como se a relação das pessoas com as obras fosse direta. O problema, portanto, estaria nos trabalhos. Mas essa relação é mediada por muitos fatores: pelas instituições de arte, pela imprensa...

Fale um pouco sobre essas mediações.

As mediações são tudo aquilo que nos ajuda a nos aproximar das obras: a curadoria da exposição, a montagem, os serviços educativos, a política das instituições. E também o jornal, a tevê... Você recebe informações aobre uma exposição – quando ela é de grande porte, envolve muitos patrocinadores – bem antes de visitá-la. Vê cartazes, anúncios, reportagens. Mas essas mediações podem tanto acelerar como retardar a aproximação do público. O Jornal Nacional, por exemplo, dificilmente vai estimular a capacidade crítica das pessoas, nem incentivar uma inquietação. Ele passa leituras prontas. Por isso, a verdadeira relação com a obra talvez seja um privilégio daquele que eu chamo de espectador. O público em geral fica no meio do caminho.

Qual a diferença entre público e espectador?
Falar do público é como falar do povo. É uma espécie de ficção, porque ele não existe como algo monolítico. É composto de vários grupos, com interesses diversos, com percursos culturais diferentes. Falar em espectador é falar de uma categoria mais específica, mais aberta ao contato com a obra. A relação com a arte parte de uma vontade. Ninguém é obrigado a ver obras de arte. É uma relação que pressupõe um engajamento, um esforço, uma abertura para se confrontar com aquilo que é diferente. É por isso que eu gosto da idéia de espectador, que seria aquele que incorpora essa vontade de se aproximar da obra. Tem uma atitude mais crítica e já entende um pouco o papel das mediações.

Você falou de mediações que retardam a aproximação das pessoas em relação às obras. Que mediações podem acelerar essa aproximação?
Os serviços educativos dos museus são um exemplo. Eles podem indicar caminhos, fornecer informações e ajudar o público a se familiarizar com as questões da arte. Mas não podem construir essa vontade de se relacionar com as obras. A vontade é fruto de um percurso. Tem a ver com educação, com os hábitos que as pessoas cultivam. Muitos turistas brasileiros vão a Nova York e visitam o MoMA sem nunca ter ido ao museu de arte da sua cidade. Em Nova York, eles vão porque aquilo está dentro de um pacote turístico. Eles fruem o museu como consomem qualquer outra atração da cidade.

Para ser espectador, é preciso ter uma relação mais contínua com a arte?

É, mas eu também acredito bastante na idéia de curto-circuito. Existem pessoas que fazem caminhos mais curtos até as obras. Entram em contato com os trabalhos e se sentem tocadas por eles. São pessoas mais sensíveis ou mais atentas que a maioria. Todo trabalho de arte contundente, intenso e interessante pode produzir curtos-circuitos, queimar etapas de mediações. A obra de arte não é só mediação. Ela também pode ser imediata.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 57, em julho de 2004, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
** /módulo de transatravessamento do artista-etc/, 2002, de Ricardo Basbaum, apresentado no contexto da 24ª Bienal de São Paulo

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