Mônica Nador deixou o ateliê em 1995 para desenvolver pinturas murais junto a comunidades carentes. Para a artista, mais importante que fazer arte é compartilhar o seu conhecimento com o maior número de pessoas possível.
O que a levou a sair do ateliê para trabalhar em comunidades carentes?
Depois de quase dez anos pintando, me vi descontente com o que fazia. Era pintora e criava coisas superlindas, mas não me sentia confortável com a minha posição na sociedade. Ao mesmo tempo, não tinha contato com nenhum tipo de pensamento que pudesse me mostrar outras possibilidades. Então, em 1995, decidi voltar a estudar. No mestrado, li um texto do Douglas Crimp, The End of Painting. A partir daí, não consegui mais pintar. Me dei conta de que o maior objetivo que eu poderia alcançar com a minha arte era ter uma tela armazenada num museu. Isso me fez entrar em pane. Eu sempre tive a idéia de que a minha arte tinha que comunicar, ser fácil, acessível. Acho um saco esse negócio de arte muito cabeça, muito intelectualizada, distante das pessoas comuns. Nunca concordei com a idéia de que arte é uma coisa para poucos. Arte é para ser compartilhada. Por isso, eu achei que o negócio era pegar as minhas pinturas e sair para a rua, levar a minha arte para fora do museu. Há um pensador italiano que diz uma coisa interessante: mais importante que uma descoberta científica de ponta é democratizar essa descoberta. Na arte é a mesma coisa. O que adianta fazer um trabalho de ponta se as pessoas não entendem? Para que serve esse conhecimento? Para ser armazenado num museu?
Então a atividade nas comunidades surgiu mais de uma vontade de ampliar o público do que de incluí-lo no teu processo de trabalho?
Sim. Naquela época, eu ainda não tinha percebido que levar o meu trabalho até as pessoas continuava sendo uma ação excludente. Aos poucos, comecei a entender que o legal não era chegar nos lugares e mostrar as coisas lindas que eu sabia fazer. O legal era dividir aquele saber. A Regina Silveira, que me orientava no mestrado, me perguntava muito isso: “Quem disse que beleza é aquilo que você acha que é?”. Comecei a entender que eu tinha de usar o repertório local para construir as imagens, que eu precisava trabalhar junto com as pessoas do lugar.
E como elas começaram a participar?
A primeira vez foi numa cidadezinha chamada Coração de Maria (BA). Eu ia pintar um coreto numa praça e botei a molecada para ajudar. Mas ali as pessoas ainda eram só mão-de-obra. Elas ajudavam a pintar, mas não a pensar o trabalho. Na segunda vez, resolvi ampliar a participação do público. Organizei uma oficina, e as pessoas desenharam quase todos os stencils [moldes vazados usados para pintar tecidos, paredes etc] que a gente usou na pintura. Quando trabalhei num assentamento do MST, em Piratininga (SP), a participação foi ainda maior. Não usei nenhum desenho meu, e as pessoas decidiram bastante sobre o trabalho. Tanto que eu quis pintar umas faixas amarelas na parede e elas não deixaram. Disseram que ia estragar a paisagem. Claro que eu poderia ter pintado, mas optei por deixá-las conduzirem as coisas, por abrir mão do meu lugar.
Naquela época, você ainda passava pouco tempo nos lugares onde trabalhava. Como veio a idéia de se estabelecer no Jardim Miriam?
Cada vez mais, eu comecei a me interessar por desenvolver um trabalho de educação. Mas para isso precisaria ficar mais tempo nas comunidades. Só assim poderia ensinar as pessoas a usar aquele conhecimento para ganhar um troco pintando casa, fazendo camiseta, pano de prato etc. Tenho esse sonho de ver o meu trabalho transformado em profissão. A gente precisa explorar o potencial pedagógico da arte, a capacidade de transformação que ela tem. Quando decidi ir para o Jardim Miriam, foi com essa idéia de realizar um trabalho educativo, de contaminar as pessoas com arte. Primeiro, eu trabalhei numa associação beneficente, mas depois de três meses eles me demitiram e eu acabei me juntando com a artista Lucia Koch para montar o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac). A gente ficou um ano batalhando, e só no começo deste ano conseguimos alugar um espaço e começar as atividades.
O que é o Jardim Miriam Arte Clube?
É um espaço de arte que fica no Jardim Miriam, um bairro de periferia de São Paulo onde vivem umas 300 mil pessoas. Quem coordena o Jamac sou eu, a Lucia Koch e o Fernando Limberger de artistas plásticos e o João Haddad, que é cientista político. Esses são os quatro cabeças, mas tem também o Marcelo Zocchio, que é fotógrafo, e o Gerson de Oliveira, que é designer. Cada um oferece um tipo de oficina, tudo gratuito. Mas a idéia é que elas sejam bem informais. A gente quer que o Jamac seja um ponto de encontro: um lugar aonde as pessoas possam ir para conversar, respirar uma coisa diferente. O objetivo maior não é dar aula, mas trabalhar no bairro junto com os moradores: pintar paredes, intervir na arquitetura...
Como acontecem as pinturas nas casas dos moradores?
O trabalho é totalmente coletivo. Eu dou sugestões, mas todo o mundo ajuda a decidir. Quando a gente combina de pintar uma casa, sempre deixo claro que só vou ensinar a técnica. Quem vai pintar são eles.
Há quem diga que o teu trabalho teria perdido o caráter autoral e se transformado em uma atividade de cunho mais assistencial. Como você vê essas críticas?
Em primeiro lugar, o conceito de autoria que a gente tem hoje é um conceito que favorece muito o mercado. É aquele do autor gênio, solitário, louco, diferente, que faz coisas que somente ele consegue fazer. Mas o que faz um artista ser artista é sempre um somatório de experiências, de conhecimentos, de idéias. Por isso, quando falam que o que eu faço não é arte, eu não ligo a mínima. Acho esse tipo de crítica uma caretice. Por que, então, me chamam para participar de exposições? Por que me convidam para representar o Brasil na Bienal de Sidney, por exemplo? E tem mais: a concepção de arte que a gente tem hoje não é a única possível. Ela vem do Iluminismo. Só tem 200 anos. Quando eu me dei conta disso, percebi que quem manda sou eu. Eu sou o artista. Sou eu quem define como a arte tem de ser. E eu não quero mais que a arte seja como ela é hoje, por isso estou dando uma outra função para ela: uma função pedagógica, transformadora. Não consigo tocar o meu trabalho sem olhar para o país onde vivo: para o desemprego, para a falta de educação. Não quero educar as pessoas para ter mais público para a arte, mas para que elas mesmas possam criar, se expressar, ser cidadãs.
* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 60, em novembro de 2004, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
O que a levou a sair do ateliê para trabalhar em comunidades carentes?
Depois de quase dez anos pintando, me vi descontente com o que fazia. Era pintora e criava coisas superlindas, mas não me sentia confortável com a minha posição na sociedade. Ao mesmo tempo, não tinha contato com nenhum tipo de pensamento que pudesse me mostrar outras possibilidades. Então, em 1995, decidi voltar a estudar. No mestrado, li um texto do Douglas Crimp, The End of Painting. A partir daí, não consegui mais pintar. Me dei conta de que o maior objetivo que eu poderia alcançar com a minha arte era ter uma tela armazenada num museu. Isso me fez entrar em pane. Eu sempre tive a idéia de que a minha arte tinha que comunicar, ser fácil, acessível. Acho um saco esse negócio de arte muito cabeça, muito intelectualizada, distante das pessoas comuns. Nunca concordei com a idéia de que arte é uma coisa para poucos. Arte é para ser compartilhada. Por isso, eu achei que o negócio era pegar as minhas pinturas e sair para a rua, levar a minha arte para fora do museu. Há um pensador italiano que diz uma coisa interessante: mais importante que uma descoberta científica de ponta é democratizar essa descoberta. Na arte é a mesma coisa. O que adianta fazer um trabalho de ponta se as pessoas não entendem? Para que serve esse conhecimento? Para ser armazenado num museu?
Então a atividade nas comunidades surgiu mais de uma vontade de ampliar o público do que de incluí-lo no teu processo de trabalho?
Sim. Naquela época, eu ainda não tinha percebido que levar o meu trabalho até as pessoas continuava sendo uma ação excludente. Aos poucos, comecei a entender que o legal não era chegar nos lugares e mostrar as coisas lindas que eu sabia fazer. O legal era dividir aquele saber. A Regina Silveira, que me orientava no mestrado, me perguntava muito isso: “Quem disse que beleza é aquilo que você acha que é?”. Comecei a entender que eu tinha de usar o repertório local para construir as imagens, que eu precisava trabalhar junto com as pessoas do lugar.
E como elas começaram a participar?
A primeira vez foi numa cidadezinha chamada Coração de Maria (BA). Eu ia pintar um coreto numa praça e botei a molecada para ajudar. Mas ali as pessoas ainda eram só mão-de-obra. Elas ajudavam a pintar, mas não a pensar o trabalho. Na segunda vez, resolvi ampliar a participação do público. Organizei uma oficina, e as pessoas desenharam quase todos os stencils [moldes vazados usados para pintar tecidos, paredes etc] que a gente usou na pintura. Quando trabalhei num assentamento do MST, em Piratininga (SP), a participação foi ainda maior. Não usei nenhum desenho meu, e as pessoas decidiram bastante sobre o trabalho. Tanto que eu quis pintar umas faixas amarelas na parede e elas não deixaram. Disseram que ia estragar a paisagem. Claro que eu poderia ter pintado, mas optei por deixá-las conduzirem as coisas, por abrir mão do meu lugar.
Naquela época, você ainda passava pouco tempo nos lugares onde trabalhava. Como veio a idéia de se estabelecer no Jardim Miriam?
Cada vez mais, eu comecei a me interessar por desenvolver um trabalho de educação. Mas para isso precisaria ficar mais tempo nas comunidades. Só assim poderia ensinar as pessoas a usar aquele conhecimento para ganhar um troco pintando casa, fazendo camiseta, pano de prato etc. Tenho esse sonho de ver o meu trabalho transformado em profissão. A gente precisa explorar o potencial pedagógico da arte, a capacidade de transformação que ela tem. Quando decidi ir para o Jardim Miriam, foi com essa idéia de realizar um trabalho educativo, de contaminar as pessoas com arte. Primeiro, eu trabalhei numa associação beneficente, mas depois de três meses eles me demitiram e eu acabei me juntando com a artista Lucia Koch para montar o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac). A gente ficou um ano batalhando, e só no começo deste ano conseguimos alugar um espaço e começar as atividades.
O que é o Jardim Miriam Arte Clube?
É um espaço de arte que fica no Jardim Miriam, um bairro de periferia de São Paulo onde vivem umas 300 mil pessoas. Quem coordena o Jamac sou eu, a Lucia Koch e o Fernando Limberger de artistas plásticos e o João Haddad, que é cientista político. Esses são os quatro cabeças, mas tem também o Marcelo Zocchio, que é fotógrafo, e o Gerson de Oliveira, que é designer. Cada um oferece um tipo de oficina, tudo gratuito. Mas a idéia é que elas sejam bem informais. A gente quer que o Jamac seja um ponto de encontro: um lugar aonde as pessoas possam ir para conversar, respirar uma coisa diferente. O objetivo maior não é dar aula, mas trabalhar no bairro junto com os moradores: pintar paredes, intervir na arquitetura...
Como acontecem as pinturas nas casas dos moradores?
O trabalho é totalmente coletivo. Eu dou sugestões, mas todo o mundo ajuda a decidir. Quando a gente combina de pintar uma casa, sempre deixo claro que só vou ensinar a técnica. Quem vai pintar são eles.
Há quem diga que o teu trabalho teria perdido o caráter autoral e se transformado em uma atividade de cunho mais assistencial. Como você vê essas críticas?
Em primeiro lugar, o conceito de autoria que a gente tem hoje é um conceito que favorece muito o mercado. É aquele do autor gênio, solitário, louco, diferente, que faz coisas que somente ele consegue fazer. Mas o que faz um artista ser artista é sempre um somatório de experiências, de conhecimentos, de idéias. Por isso, quando falam que o que eu faço não é arte, eu não ligo a mínima. Acho esse tipo de crítica uma caretice. Por que, então, me chamam para participar de exposições? Por que me convidam para representar o Brasil na Bienal de Sidney, por exemplo? E tem mais: a concepção de arte que a gente tem hoje não é a única possível. Ela vem do Iluminismo. Só tem 200 anos. Quando eu me dei conta disso, percebi que quem manda sou eu. Eu sou o artista. Sou eu quem define como a arte tem de ser. E eu não quero mais que a arte seja como ela é hoje, por isso estou dando uma outra função para ela: uma função pedagógica, transformadora. Não consigo tocar o meu trabalho sem olhar para o país onde vivo: para o desemprego, para a falta de educação. Não quero educar as pessoas para ter mais público para a arte, mas para que elas mesmas possam criar, se expressar, ser cidadãs.
* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 60, em novembro de 2004, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
** Imagens de pinturas murais realizadas por Mônica Nador em comunidades carentes.
Um comentário:
Olá Fernanda,
O Marco me mandou o endereço do seu blog e tenho sido uma leitora assídua dos seus textos,que além de muito bem escritos,têm me ajudado a compreender melhor os caminhos da arte contemporânea. Há muitas informações ricas e análises super interessantes, que nos instigam a querer apreciar as criações dessas vanguardas. Nesse mundo tão saturado de estímulos,parece que o grande desafio do artista é o de apresentar alguma coisa que nos toque, que nos afete, que nos acorde. Vejo que em alguns casos não é nem mais um objeto, mas um arranjo, uma nova forma de dispor coisas no espaço, ou até mesmo um gesto, uma atitude. Um dia desses fui a um museu de arte contemporânea e me intriguei quando vi um banco de madeira abaixo de um extintor de incêndio afixado na parede em um canto da sala. Me aproximei, fiquei observando, tentando "captar" algum sentido naquela "instalação", mas logo o segurança me informou que não se tratava de uma obra, mas de equipamentos do museu (que mico, hein!). A Mônica Nador é amiga de uma amiga minha e acompanhei um de seus trabalhos, quando pintou com a comunidade as paredes da biblioteca "viagem ao céu" num assentamento do MST em Sarapuí, perto de Itapetininga, SP. Foi uma experiência muito incrível ver pessoas criando as máscaras e as pintando a biblioteca, e o resultado ficou muito lindo! Sempre estou abrindo o blog para ver se tem novos textos, ou mesmo reler os outros, ver as fotos. Parabéns pelo seu lindo trabalho! Beijão.
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