O crítico, curador e professor da USP Agnaldo Farias afirma que a produção artística nunca foi tão plural quanto hoje, mas que essa situação não justifica o “vale-tudo” que muitos afirmam existir na arte contemporânea.
No livro Arte brasileira hoje, você compara a produção brasileira à imagem de um arquipélago, em que cada obra seria uma ilha com uma atmosfera específica e uma vegetação particular. Cada artista cria o seu próprio estilo?
A palavra estilo remete à idéia de solução formal. E não estamos mais discutindo soluções formais. Estamos falando em tipos de procedimento. Você pode ter procedimentos homólogos com soluções formais diferentes. Por isso não dá para dizer que cada artista cria um estilo, ou seja, uma solução formal recorrente. Mas dá para dizer que cada artista cria um universo próprio. É impossível falar em correntes na arte de hoje. Muito menos em uniformidade. A fragmentação é um dado do nosso tempo. Daí a imagem do arquipélago. No início do século, você até identificava vertentes, mas hoje é complicado fazer reduções. Mesmo no caso brasileiro, que ainda está longe de ter um tremendo panorama.
Estamos vivendo o período mais pluralista da história da arte?
Sem dúvida. Nunca passamos por um momento como este. É uma característica que vem se desenvolvendo desde os anos 1950 e se acentua nos anos 1960, quando as fronteiras entre as expressões artísticas se tornaram mais fluidas. Antes, cada linguagem estava voltada para si mesma: a pintura discutia elementos estritamente pictóricos, a escultura questionava elementos estritamente escultóricos e assim por diante. Jackson Pollock, por exemplo, discutia o gesto, a superfície, a maneira como a tela era colocada no chão. E isso também acontecia na literatura, quando ela se voltava para o problema do foco narrativo. Com a crise da arte moderna, a gente passa a ter expressões que não são nem escultura, nem pintura, nem desenho, mas carregam vários desses elementos. É o caso das combine paintings, do Rauschenberg, que não são nem pintura, nem escultura. Ou das peças do Merce Cunningham e do John Cage, que não são nem música, nem teatro. Hoje em dia, não há mais limites claros entre as expressões artísticas. Só que isso nem sempre foi assim. Até o século 19, havia cânones tão fortes, que era praticamente proibido desobedecê-los. Mas isso não significa que as expressões clássicas não sobrevivam. Elas têm, inclusive, demonstrado grande vitalidade. A pintura, por exemplo, atravessa um excelente momento.
Nem tudo que é produzido hoje é arte contemporânea. O termo não designa nem uma questão temporal, nem um padrão artístico, dada a diversidade de obras. O que ele designa então?
Essas categorias são sempre complicadas porque nunca dão conta de definir as coisas. Mas o que vale é o seguinte: nem toda criação propicia um estado de suspensão ou uma ruptura. Eu cobro da arte que ela me inquiete. Isso poderia ser uma definição: contemporâneos são os trabalhos que não são acomodados. Dentro dessa lógica, Goya é profundamente contemporâneo. Continua difícil olhar uma obra dele. Ficar diante de um Velázquez, não é mole. De um Turner, também não. Há obras que perduram, não perdem o vigor. Aí você me pergunta, mas Da Vinci é contemporâneo? Eu acho que é. Por isso eu diria que nem tudo que é feito agora é arte contemporânea, mas nem tudo que foi feito anteriormente é arte do passado. Tem muita gente que faz arte hoje por diletantismo. Eu acho bacana, bonito. Mas para quem faz. Não dá pra colocar na categoria de arte contemporânea.
Por quê?
Porque a arte contemporânea tem que ter um comprometimento com o nosso tempo, as nossas questões. O artista tem que ter uma posição em relação ao mundo em que vive, não pode se esquivar dele. E isso pode acontecer quando ele faz uma instalação ou uma pintura. Não existe um suporte que seja melhor ou mais contemporâneo que o outro. A incorporação das novas mídias é natural. Mas não é porque a tecnologia é atual que dali sairão comentários sobre o nosso tempo.
E a arte popular? Embora haja manifestações muito interessantes, ela também fica de fora daquilo que se convencionou chamar de arte contemporânea.
O Arthur Bispo do Rosário é um artista maior. O Cartola e o Nelson do Cavaco também. Não tem essa de arte popular. Tem boa arte e tem aquilo que não é arte, e fim de papo. Tem obra de barro que é artesanato, como também tem pintura que é artesanato. Faríamos muito bem se nos livrássemos desse preconceito e olhássemos mais para essas manifestações. A gente tem muito a aprender com elas.
No livro Arte brasileira hoje, você compara a produção brasileira à imagem de um arquipélago, em que cada obra seria uma ilha com uma atmosfera específica e uma vegetação particular. Cada artista cria o seu próprio estilo?
A palavra estilo remete à idéia de solução formal. E não estamos mais discutindo soluções formais. Estamos falando em tipos de procedimento. Você pode ter procedimentos homólogos com soluções formais diferentes. Por isso não dá para dizer que cada artista cria um estilo, ou seja, uma solução formal recorrente. Mas dá para dizer que cada artista cria um universo próprio. É impossível falar em correntes na arte de hoje. Muito menos em uniformidade. A fragmentação é um dado do nosso tempo. Daí a imagem do arquipélago. No início do século, você até identificava vertentes, mas hoje é complicado fazer reduções. Mesmo no caso brasileiro, que ainda está longe de ter um tremendo panorama.
Estamos vivendo o período mais pluralista da história da arte?
Sem dúvida. Nunca passamos por um momento como este. É uma característica que vem se desenvolvendo desde os anos 1950 e se acentua nos anos 1960, quando as fronteiras entre as expressões artísticas se tornaram mais fluidas. Antes, cada linguagem estava voltada para si mesma: a pintura discutia elementos estritamente pictóricos, a escultura questionava elementos estritamente escultóricos e assim por diante. Jackson Pollock, por exemplo, discutia o gesto, a superfície, a maneira como a tela era colocada no chão. E isso também acontecia na literatura, quando ela se voltava para o problema do foco narrativo. Com a crise da arte moderna, a gente passa a ter expressões que não são nem escultura, nem pintura, nem desenho, mas carregam vários desses elementos. É o caso das combine paintings, do Rauschenberg, que não são nem pintura, nem escultura. Ou das peças do Merce Cunningham e do John Cage, que não são nem música, nem teatro. Hoje em dia, não há mais limites claros entre as expressões artísticas. Só que isso nem sempre foi assim. Até o século 19, havia cânones tão fortes, que era praticamente proibido desobedecê-los. Mas isso não significa que as expressões clássicas não sobrevivam. Elas têm, inclusive, demonstrado grande vitalidade. A pintura, por exemplo, atravessa um excelente momento.
Nem tudo que é produzido hoje é arte contemporânea. O termo não designa nem uma questão temporal, nem um padrão artístico, dada a diversidade de obras. O que ele designa então?
Essas categorias são sempre complicadas porque nunca dão conta de definir as coisas. Mas o que vale é o seguinte: nem toda criação propicia um estado de suspensão ou uma ruptura. Eu cobro da arte que ela me inquiete. Isso poderia ser uma definição: contemporâneos são os trabalhos que não são acomodados. Dentro dessa lógica, Goya é profundamente contemporâneo. Continua difícil olhar uma obra dele. Ficar diante de um Velázquez, não é mole. De um Turner, também não. Há obras que perduram, não perdem o vigor. Aí você me pergunta, mas Da Vinci é contemporâneo? Eu acho que é. Por isso eu diria que nem tudo que é feito agora é arte contemporânea, mas nem tudo que foi feito anteriormente é arte do passado. Tem muita gente que faz arte hoje por diletantismo. Eu acho bacana, bonito. Mas para quem faz. Não dá pra colocar na categoria de arte contemporânea.
Por quê?
Porque a arte contemporânea tem que ter um comprometimento com o nosso tempo, as nossas questões. O artista tem que ter uma posição em relação ao mundo em que vive, não pode se esquivar dele. E isso pode acontecer quando ele faz uma instalação ou uma pintura. Não existe um suporte que seja melhor ou mais contemporâneo que o outro. A incorporação das novas mídias é natural. Mas não é porque a tecnologia é atual que dali sairão comentários sobre o nosso tempo.
E a arte popular? Embora haja manifestações muito interessantes, ela também fica de fora daquilo que se convencionou chamar de arte contemporânea.
O Arthur Bispo do Rosário é um artista maior. O Cartola e o Nelson do Cavaco também. Não tem essa de arte popular. Tem boa arte e tem aquilo que não é arte, e fim de papo. Tem obra de barro que é artesanato, como também tem pintura que é artesanato. Faríamos muito bem se nos livrássemos desse preconceito e olhássemos mais para essas manifestações. A gente tem muito a aprender com elas.
Uma das críticas que se faz ao pluralismo é que ele cria uma espécie de vale tudo e acaba dando margem a trabalhos de qualidade discutível.
Vale tudo coisa alguma. Isso não existe. A obra tem que ter inteligência, solidez. Sempre vai haver o trigo e o joio: trabalhos que têm qualidade e trabalhos que não têm. Nossa tarefa é separá-los. É claro que às vezes as fronteiras ficam borradas. Freqüentemente eu me vejo sem palavras diante de alguns trabalhos e também vejo artistas sem palavras. Os leigos ficam dizendo que não entendem, mas muitas vezes o crítico também não entende. Todo mundo é público em última análise.
Ficou mais difícil avaliar?
Em primeiro lugar, ficou mais difícil acompanhar a produção. E é claro que ficou mais complicado separar aquilo que é arte daquilo que não é. Antigamente, os artistas trabalhavam a partir de categorias definidas: pintura, escultura, gravura, desenho. Era mais fácil estabelecer parâmetros. Hoje você tem que ser mais flexível, mais atento e tem que dominar mais áreas, porque são mais elementos que estão em jogo. E tem aquela velha questão: tudo que está mais próximo é mais difícil de avaliar. No futuro teremos parâmetros bem mais claros. Muitas obras já serão clássicas.
E quanto ao mercado de arte? Essa diversidade não favorece um certo oportunismo?
Claro. É possível criar fenômenos que, mesmo que não se sustentem por muito tempo, vendam muito numa determinada época. São operações comerciais mesmo. Mas tem gente com talento e gente sem talento. Só não dá pra nivelar todo mundo por baixo e achar que ninguém presta, porque o mercado comanda tudo. O mercado está interessando em novidade e sempre estará. E novidade vendável, indiscutivelmente. Agora eu ainda acho mais difícil vender um boi cortado ao meio ou uma cabeça de sangue do Marc Quinn do que vender uma pintura. Especulação existe e sempre haverá de existir. Mas não dá pra falar disso no Brasil. Que mercado nós temos aqui? Quantos colecionadores existem em Porto Alegre além do Justo Werlang? Em São Paulo, tem meia dúzia. O mercado de arte contemporânea ainda não emplacou no país. Qual é a capacidade que ele tem, portanto, de ficar especulando? Nenhuma. O Brasil ainda não faz parte desse jogo. Nós mal conseguimos entrar. São poucos os artistas daqui que circulam lá fora.
* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 58, em agosto de 2004, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
** Trabalho de Arthur Bispo do Rosário.
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