Quando nos
mudamos para uma casa, ela demora a tomar forma. Imaginamos onde acomodar o
sofá, a mesa, os copos, a bicicleta. Onde vão geladeira e fogão e aquele vaso
que ganhamos da vó, ou a luminária que vimos na revista e não sai da cabeça.
Quando habitamos um novo lugar, demora a entender como ele vai funcionar. Ou
melhor, como vamos funcionar nele. Se o local preferido para ler vai ser a
sala, o pátio, a cozinha, se as janelas vão ficar mais abertas ou fechadas, se
o barulho da rua vai incomodar, se a vizinhança é amigável, se vamos nos
habituar com a nova campainha.
Diferente
de uma exposição, que salvo projetos mais experimentais, abre pronta – dos
trabalhos em exibição à expografia, texto de apresentação, sinalização, etc – a
Casa M é como uma nova morada. Inaugura cheia de sonhos e projetos e após um intenso
trabalho para encontrar um local, um arquiteto, fazer uma reforma e,
principalmente, pensar em como ocupar o espaço. Não apenas com móveis,
equipamentos, livros, obras e objetos, mas com um programa que convide as
pessoas a conviverem, habitarem e ativarem o lugar.
Por isso
não é exagero dizer que pouco sei da Casa M no momento em que escrevo este
texto, há poucos dias da abertura. Sei de um projeto, de um ponto de partida,
de um conjunto de intenções. Da vontade de estender a Bienal do Mercosul no
tempo e estabelecer uma relação mais próxima com a comunidade de Porto Alegre.
Dos questionamentos sobre quem é e o que quer essa comunidade.[1]
Da proposta de fomentar a cena artística local e
contribuir para a criação de infraestrutura, proporcionando um ambiente de encontro,
debate, troca e experimentação. Da ideia de conjugar diferentes linguagens e
campos do conhecimento, estimulando diálogos e contaminações e ampliando os
públicos das artes visuais. Do objetivo de promover o intercâmbio com cenas e
profissionais de outros lugares do Brasil e do mundo e, por fim, da vontade de
criar uma comunidade em torno da 8a Bienal do Mercosul, aproximando os
visitantes dos temas e artistas que compõem esta edição.
Imbuída de um certo espírito utópico, a Casa M abre-se à “manifestação daquilo que ainda não é”.[2] Por um lado, gera sentido apenas no uso que se faz dela, isto é, nas
relações, vivências, reflexões, pesquisas, consensos e dissensos a que se
disponibiliza e busca promover. Por outro, vale-se da tradição dos chamados artist-run spaces – espaços criados e
geridos por artistas[3] – para
estabelecer um projeto em moldes semelhantes, porém no contexto de uma grande
instituição, torcendo ou reinventando não só o modelo Bienal, mas também o
formato que a inspira. O que não significa inventar a roda, que fique claro,
pois a própria Casa M parte de uma experiência anterior, a Casa del Encuentro de
Medellín.[4]
Ainda assim, a característica traz particularidades importantes ao
projeto, como o aporte de orçamento (vultoso, se comparado ao de iniciativas
independentes), a possibilidade de contar com uma equipe numerosa, e o grande
interesse do público, despertado não só pela novidade, mas pelo selo que a
Bienal do Mercosul representa, para falar dos aspectos facilitadores. A
condição, porém, também envolve desafios, como a necessidade de atender a uma
série de trâmites e protocolos institucionais e a capacidade de lidar com o
enrijecimento próprio de organizações dessa natureza e complexidade – questões
que fazem da negociação e jogo de cintura estratégias fundamentais para
amolecer limites e expandir possibilidades.
Exemplo dessa torção foi a necessidade de solicitar um alvará à
prefeitura de Porto Alegre – obrigação formalmente dispensada, devido à
“inexistência de dispositivo que discipline o licenciamento de entidade de
natureza cultural sem finalidade lucrativa”. Pois essa espécie de não lugar
sugerido pelo documento que autoriza a instalação da Casa M – e reflete a
condição do espaço de estar entre um lugar e outro, entre uma forma conhecida e
uma desconhecida – fala de um desencaixe e de uma abertura caros ao projeto. De
um espaço cultural com jeito de morada, uma Casa Maluca como apelidou a filha
de uma amiga, com uma campainha igual e ao mesmo tempo diferente das habituais
(trabalho de Vitor Cesar); uma vitrine que se renova mensalmente, mas não é
usada para vender e sim compartilhar; uma estante que é também obra de arte (assinada
por Daniel Acosta), um mobiliário flexível, capaz de atender a demandas
variadas (projeto de Eduardo Saorin e Lena Cavalheiro), e um pátio de encantar
crianças, abacateiros, borboletas e adultos (obra de Fernando Limberger).
Outra
particularidade da Casa M é sua vocação inter ou extra disciplinar, isto é, o
fato de ela não se restringir a um local expositivo. Aberta a diferentes
linguagens, abriga performances, sessões de vídeo, pocket shows, debates em
torno da 8a Bienal, cursos e oficinas, além de conversas e propostas
que mesclam diferentes expressões artísticas e campos do conhecimento e de uma
programação voltada especialmente para os vizinhos da morada.[5]
Dentre os ambientes, uma área de convivência (com café, água e wi-fi), um
ateliê coletivo (para atividades educativas e também para os artistas que
integram a programação), um espaço para projeções localizado no porão, uma
cozinha que faz as vezes de sala de reuniões, um pátio, um terraço e uma sala
de leitura que disponibiliza ao público a coleção de livros e revistas do
Núcleo de Documentação e Pesquisa da Fundação Bienal (NDP), bem como uma seleção
de publicações sobre os temas e artistas da 8a edição.
As
exposições, que acontecem a cada mês, estão concentradas na vitrine da casa –
que funcionou como chapelaria no início do século passado e foi residência da artista
e educadora Christina Balbão (ver texto de Neiva Bohns).[6]
É nesse espaço voltado para a rua Fernando Machado, no centro histórico da
cidade, que Tiago Giora, Rogério Severo, Viviane Pasqual, Helene Sacco, Rommulo
Conceição, Glaucis de Morais e João Genaro desenvolvem projetos pensados
especialmente para o contexto da morada.
A ênfase
na troca de experiências e no processo de criação mais que em seu resultado é
outro aspecto fundamental, refletido em programas como os Combos e Duetos. No
primeiro, três convidados de diferentes áreas compartilham com o público
projetos em desenvolvimento e trocam ideias sobre suas práticas, seja ela
artística, científica, curatorial, gastronômica, crítica, etc. Já no segundo,
doze artistas e coletivos de variadas linguagens – música, literatura, teatro,
vídeo, dança, cinema e artes visuais – utilizam a Casa M como espaço de trabalho
e investigação e desenvolvem propostas em colaboração. Cada participante forma duas
duplas ou duetos, apresentados ao público quinzenalmente, e oferece uma oficina
aberta à comunidade.[7] Intercâmbio
e processo estão igualmente presentes nas residências curatoriais, em que
quatro curadores de distintos países da América Latina passam uma semana em
Porto Alegre, visitando ateliês e ativando a programação.[8]
Mas para além de suas ações e atividades, a Casa M é também, e talvez primordialmente, um
espaço para simplesmente estar. Como uma morada, um lugar para ler um livro, conversar,
tomar um café, ouvir música, lagartear no pátio, contemplar a vista do
terraço... Um espaço para experimentar outras possibilidades de se relacionar
com a arte, a vida, o outro, a cidade.
*
Texto publicado no catálogo da 8a Bienal do Mercosul, de curadoria geral de Jose Roca, sobre um dos projetos da mostra, a Casa M, na qual atuei como coordenadora curatorial. A Casa M funcionou no centro histórico de Porto Alegre, entre
24 de maio e 17 de dezembro de 2011.
[1] Uma das iniciativas nesse sentido foi a constituição
de um conselho que apoia as equipes curatorial e de programação no desenho da ações
e atividades da Casa M. O grupo é formado por seis artistas, pesquisadores,
curadores e agentes culturais vinculados ao cinema, teatro, música e artes
visuais. São eles: Alexandre Santos,
Camila Gonzatto, Gabriela Motta, Jezebel de Carli, Leo Felipe e Neiva Bohns.
[3] Imbuídos de uma vontade de “fazer a seu modo” e em
resposta a certas deficiências apresentadas pelo sistema da arte e da cultura, os
chamados artist-run spaces
despontaram na Europa, Estados Unidos e Canadá nos anos 1960 e 1970 e ganharam
um novo impulso a partir dos 1990, inclusive no Brasil, com a criação de
espaços como o Torreão (Porto
Alegre, 1993-2009), AGORA/Capacete
(Rio de Janeiro/, 1999-2002) e Alpendre
(Fortaleza, 1999), e mais recentemente, Ateliê397 (São Paulo, 2003), Branco do
Olho (Recife, 2004) e Subterrânea (Porto Alegre, 2006), para citar alguns
exemplos.
[4] A Casa del Encuentro integrou as ações do Encuentro Internacional
Medellín 2007 (MDE07), do qual José Roca foi cocurador.
[5] Dentre as atividades pensadas para a vizinhança,
estão o Chá da Casa, que acontece a
cada mês e teve sua primeira edição realizada antes mesmo da inauguração do
espaço; a Oficina dos Vizinhos, que
se desenvolve ao longo do ano e é ministrada pela artista e educadora Cláudia
Sperb; e o projeto La Colección de la
Cuadra, do artista Jaime Iregui.
[6] Professora do Instituto de Artes da UFRGS por mais
de 30 anos, Christina Balbão (1917-2007) participou da formação de várias
gerações de artistas em Porto Alegre, a exemplo de Fernando Limberger.
Dispostos na sala de leitura da Casa M, uma seleção de auto-retratos e um
retrato assinado pela amiga e artista Alice Soares prestam uma homenagem à
educadora.
[7] Integram o programa Duetos os artistas Carla Borba, Coletivo Avalanche, Daniel Galera,
Diego Mac, Elcio Rossini, Maíra Coelho, Marcelo Noah, Panetone, Rodrigo John,
Tatiana Rosa, Teatro Geográfico e Yanto Laitano, todos residentes em Porto
Alegre.
[8] Participam do programa Clarissa Diniz (Recife,
Brasil), Karina Granieri (Buenos Aires, Argentina), Mauricio Marcín (Cidade do
México) e Soledad García (Santiago, Chile).
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