Objetos encontrados
Não é a primeira vez que Rochelle Costi chama a atenção para uma espécie de estética da vida diária, isto é, para a maneira como as pessoas articulam a sua individualidade – seus gostos, interesses e percepções – nos espaços, objetos e atividades com os quais convivem cotidianamente. Na série Quartos, de 1998, fotografias em grandes dimensões retratavam quartos de dormir de paulistanos comuns, de diferentes classes sociais. Ao registrarem sua intimidade, as imagens revelavam hábitos, representações e atitudes os mais diversos frente ao espaço reservado da casa. Manifestações de individualidade que acabavam por compor retratos dos moradores, ainda que suas figuras não estivessem presentes. Já em Escolha, de 2005, o olhar da artista voltou-se para estabelecimentos comerciais do Largo da Batata, em São Paulo. Imagens do interior de lojas populares, apinhadas de produtos por todos os lados, traduziam de maneira sensível a visualidade do local. Impressas em grandes formatos, as fotografias criavam um efeito similar ao da série Quartos, ao sugerirem extensões do ambiente.
Em Objeto encontrado, trabalho desenvolvido como Artista Convidada do Programa de Exposições 2009, o interesse por essa estética cotidiana também pautou as investigações de Rochelle, assim como a formação de uma espécie de coleção de imagens (“fotografar é eleger um tema e colecionar”[1]) e o jogo com a arquitetura na apresentação da obra. O universo retratado, no entanto, já não é tão reconhecível. Chamada a desenvolver um projeto a partir do contexto do Centro Cultural, foi no porão que a artista centrou seu olhar. Local desconhecido do grande público, ele abriga as oficinas de marcenaria, elétrica e serralheria, além da gráfica e do laboratório de restauro. As imagens que compõem o trabalho trazem à luz um pouco desses ambientes – e das pessoas que os habitam – ao revelar pequenas reapropriações do lugar[2]: um cartaz colado na parede, uma tampa de lixo pintada, vasos de plantas, um tabuleiro de xadrez feito de fórmica... Objetos que conferem algo de doméstico e familiar a espaços pretensamente impessoais. Os detalhes, no entanto, não chegam a retratar os locais por inteiro. É como se os descobríssemos por entre frestas, condição potencializada pela maneira como as fotografias foram expostas: em pequenos backlights inseridos nos painéis expositivos do CCSP.
Estratégia recorrente no trabalho de Rochelle, a criação de suportes específicos para a exibição de suas imagens acaba por incorporar os “temas” de suas coleções à maneira como os trabalhos são articulados. Produzidos no porão, com madeira reutilizada e sem acabamento, os backlights carregam algo da visualidade e dos fazeres que caracterizam o lugar. Dispostos no que seria o “avesso” dos painéis, isto é, no lado de fora das salas expositivas ocupadas por outros artistas, eles contribuem para revelar esse avesso institucional – espaço fora do alcance do grande público e portanto menos mediado em sua organização e apresentação. Ou alguém imaginaria encontrar um painel de embalagens de café nas paredes de um centro cultural? Apenas em meio a uma exposição ou oficina de arte. Ao tomar emprestada a expressão objet trouvé (em português, objeto encontrado), usada pelos surrealistas para designar artigos comuns tomados como obra de arte[3], Objeto encontrado não deixa de sugerir uma operação similar, afirmando um interesse estético e subjetivo em construções banais, tornadas invisíveis pelo dia-a-dia.
[1] Em depoimento da artista à autora.
[2] Também foram fotografados por Rochelle o laboratório fotográfico, a área de suporte técnico da Biblioteca Braille e a cenotécnica.
[3] Diferentemente dos readymades de Marcel Duchamp, objetos de manufatura industrial desprovidos de subjetividade ou interesse estético, os objets trouvés surrealistas eram escolhidos em função de sua singularidade e beleza.
* Texto a ser publicado no catálogo do Programa de Exposições 2009 do Centro Cultural São Paulo, em que Rochelle Costi participou como Artista Convidada, ao lado de Daniel Senise e Ricardo Basbaum. Suas exposições aconteceram de 14 de novembro de 2009 a 14 de março de 2010.
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Um comentário:
Esse seu texo incita o conhecimento das obras. Me pareceu interessante essa busca da Rochelle. Estou cusiosa para ver a exposiçao. Bises.
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