Em japonês, kawaru significa “aquilo que substitui a coisa”. A expressão evoca a base de todo sistema de linguagem, a noção de representação. O fato de que a comunicação de idéias e sentimentos se dá através de signos, sejam eles gráficos, sonoros ou gestuais, para citar algumas possibilidades. Pois o conceito de kawaru também é chave para o trabalho de Angela Detanico e Rafael Lain, que utilizam o design e a tipografia, entre outras mídias, para criar sistemas de escrita. Ou, em outras palavras, sistemas de compreensão e organização do mundo.
Exemplo disso é O mundo justificado... (2004), em que os artistas redesenham o mapa-múndi através de linhas gráficas diagramadas tal qual um texto: justificadas, alinhadas à esquerda, centralizadas e alinhadas à direita. Ao desestabilizar a imagem usual do planisfério, construída a partir da Projeção de Mercator, a dupla evidencia o caráter arbitrário do sistema de notação em questão, a cartografia. Isto porque, como todo sistema de linguagem, ela não apenas representa a realidade, mas a recria. Define o que é centro e o que é periferia, o que é norte e o que é sul, o que é grande e o que é pequeno etc. Trata-se de um instrumento utilizado para traduzir o esférico em plano que nada tem de neutro ou imparcial, visto que sugere uma determinada leitura do mundo.
Operação semelhante é utilizada em Pilha (2003), um sistema de escrita que relaciona pilhas de objetos idênticos às letras do alfabeto. Um tijolo corresponde à letra “a”, dois à letra “b”, três à letra “c” e assim por diante. O trabalho também sublinha a natureza arbitrária dos sistemas de linguagem, ao mesmo tempo em que se utiliza dela para construir suas escrituras. É que a cada edição do projeto, o material utilizado nas pilhas e o texto por elas representado são definidos a partir do contexto em que a obra é exibida. Ao participarem da Trienal de Echigo-Tsumari, no Japão, por exemplo, os artistas ocuparam uma escola primária com pilhas feitas de materiais escolares e outros elementos relacionados ao lugar. Uma delas representava a palavra kawaru, noção central em um espaço dedicado, entre outras atividades, à aquisição e ao aprimoramento da linguagem. Dada a complexidade da língua japonesa, a adaptação acabou por gerar uma nova versão do trabalho (com dois eixos de acumulação de objetos, um para as vogais e outro para as consoantes), batizada de Pilha-Kana (2006).
Além de sistemas de escrita, Detanico e Lain também desenvolvem tipografias experimentais. Uma delas é Utopia (2001-2003), que combina elementos da arquitetura moderna de Oscar Niemeyer (as letras maiúsculas) a exemplos da ocupação informal do tecido urbano (as letras minúsculas), aproximação comum nas grandes cidades brasileiras. O interessante é que a tipografia permite criar paisagens em potência, ou melhor, reconfiguráveis, o que responde à condição mutável desse tipo de espaço. Helvetica Concentrated (2004) é outro tipo idealizado pelos artistas, dessa vez em colaboração com Jiri Skála. Trata-se de uma variação da tipografia suíça, que concentra a quantidade de tinta usada em cada fonte em um único ponto. Assim, a primeira letra do alfabeto, a menor, passa a ser o “i”, e a última, a maior, passa a ser o “W”. Além de ter sido aplicada na sinalização de uma monográfica da dupla, Helvetica Concentrated foi recentemente incorporada em uma nova criação, a série Nome das Estrelas (2007). As imagens, que remetem à forma de uma estrela, representam, literalmente, o nome de cada corpo celeste grafado com o tipo inventado pelos artistas. Outro trabalho de Angela Detanico e Rafael Lain que conjuga precisão conceitual com poesia em um sistema que nos convida a ler o mundo com outros olhos. Ou com outras palavras.
* Texto originalmente publicado em suplemento especial da revista EXIT Express dedicado à arte brasileira, em fevereiro de 2008.
Exemplo disso é O mundo justificado... (2004), em que os artistas redesenham o mapa-múndi através de linhas gráficas diagramadas tal qual um texto: justificadas, alinhadas à esquerda, centralizadas e alinhadas à direita. Ao desestabilizar a imagem usual do planisfério, construída a partir da Projeção de Mercator, a dupla evidencia o caráter arbitrário do sistema de notação em questão, a cartografia. Isto porque, como todo sistema de linguagem, ela não apenas representa a realidade, mas a recria. Define o que é centro e o que é periferia, o que é norte e o que é sul, o que é grande e o que é pequeno etc. Trata-se de um instrumento utilizado para traduzir o esférico em plano que nada tem de neutro ou imparcial, visto que sugere uma determinada leitura do mundo.
Operação semelhante é utilizada em Pilha (2003), um sistema de escrita que relaciona pilhas de objetos idênticos às letras do alfabeto. Um tijolo corresponde à letra “a”, dois à letra “b”, três à letra “c” e assim por diante. O trabalho também sublinha a natureza arbitrária dos sistemas de linguagem, ao mesmo tempo em que se utiliza dela para construir suas escrituras. É que a cada edição do projeto, o material utilizado nas pilhas e o texto por elas representado são definidos a partir do contexto em que a obra é exibida. Ao participarem da Trienal de Echigo-Tsumari, no Japão, por exemplo, os artistas ocuparam uma escola primária com pilhas feitas de materiais escolares e outros elementos relacionados ao lugar. Uma delas representava a palavra kawaru, noção central em um espaço dedicado, entre outras atividades, à aquisição e ao aprimoramento da linguagem. Dada a complexidade da língua japonesa, a adaptação acabou por gerar uma nova versão do trabalho (com dois eixos de acumulação de objetos, um para as vogais e outro para as consoantes), batizada de Pilha-Kana (2006).
Além de sistemas de escrita, Detanico e Lain também desenvolvem tipografias experimentais. Uma delas é Utopia (2001-2003), que combina elementos da arquitetura moderna de Oscar Niemeyer (as letras maiúsculas) a exemplos da ocupação informal do tecido urbano (as letras minúsculas), aproximação comum nas grandes cidades brasileiras. O interessante é que a tipografia permite criar paisagens em potência, ou melhor, reconfiguráveis, o que responde à condição mutável desse tipo de espaço. Helvetica Concentrated (2004) é outro tipo idealizado pelos artistas, dessa vez em colaboração com Jiri Skála. Trata-se de uma variação da tipografia suíça, que concentra a quantidade de tinta usada em cada fonte em um único ponto. Assim, a primeira letra do alfabeto, a menor, passa a ser o “i”, e a última, a maior, passa a ser o “W”. Além de ter sido aplicada na sinalização de uma monográfica da dupla, Helvetica Concentrated foi recentemente incorporada em uma nova criação, a série Nome das Estrelas (2007). As imagens, que remetem à forma de uma estrela, representam, literalmente, o nome de cada corpo celeste grafado com o tipo inventado pelos artistas. Outro trabalho de Angela Detanico e Rafael Lain que conjuga precisão conceitual com poesia em um sistema que nos convida a ler o mundo com outros olhos. Ou com outras palavras.
* Texto originalmente publicado em suplemento especial da revista EXIT Express dedicado à arte brasileira, em fevereiro de 2008.
** Antes de mais nada (pilha), 2003.
Um comentário:
Excelente teu blog! Aguardamos ansiosos mais atualizações.
Postar um comentário