Exercícios de possibilidade



É próprio da arte reinventar o modo como vemos e habitamos o mundo, indagar a menor distância entre dois pontos, como propõe o poema de Jorge Bucksdricker, ainda que ela insista em parecer uma reta. Exercícios de possibilidade reúne trabalhos, que, a seu modo, investigam outros possíveis: lançam luz sobre aquilo que não percebemos, aproximam realidades distantes, transformam obstáculos e limitações, partem do que está dado para criar o que não está. 

É o caso das chamadas gambiarras apresentadas pelo trabalho homônimo de Cao Guimarães. Trata-se de pequenas invenções, coletadas pelo artista desde 2001, que se valem da criatividade, do bom humor e do improviso para responder a problemas e necessidades cotidianas – não da forma ideal, ainda que muitas dessas soluções temporárias terminem por se tornar permanentes, mas partindo dos materiais, ferramentas e condições existentes a cada momento. Assim, uma churrasqueira é criada a partir de um carrinho de obras e uma cadeira velha, um côco verde faz às vezes de travesseiro, um CD compõe uma luminária e uma caixa de cigarros é usada para guardar moedas. Objetos que pertencem a campos distintos são aqui recuperados e aproximados, tendo suas funções reinventadas a partir da necessidade à qual respondem. 


Tais exercícios de possibilidade guardam relação com os Objetos intersticiales (2006-2012), de Carlos Silva. A série de fotografias chama a atenção para uma espécie de estética urbana que muitas vezes permanece invisível aos nossos olhos: mobiliários improvisados, como barracas e carrinhos, utilizados para armazenar e vender os mais variados produtos, em feiras, praças ou pelas ruas da cidade. Trata-se de inventariar o modo como as pessoas articulam a sua individualidade – seus gostos e percepções – nos objetos, espaços e atividades com os quais convivem cotidianamente. 

A ideia de tecnologia caseira também está presente em Hidratación del paisage chileno, do mesmo Carlos Silva, um curioso e bem humorado sistema de irrigação que conecta o interior da galeria à paisagem que a circunda. Por meio de uma mangueira amarela, a água da pia do banheiro tem seu curso desviado até uma árvore seca localizada em frente ao espaço expositivo – elemento que passaria despercido, não fosse o trabalho do artista. O desenho formado pela intervenção termina por transformar não só o entorno, mas também o interior da galeria, fazendo de um gesto simples – o de aguar uma planta – um intento tão heróico quanto absurdo.



Já em Infraestructura fantástica (2012), do artista e também músico Rodrigo Araya, a noção de tecnologia adquire outros contornos. O conjunto de obras recupera equipamentos antigos, como sistemas de áudio e dispositivos de gravação e reprodução de dados, para criar estruturas híbridas, composições inusitadas que transitam entre o funcional e o fantástico. Os imaginários – ou as promessas de futuro – associados a produtos hoje obsoletos são aqui embaralhados e retrabalhados em aparelhagens que se assemelham a brinquedos – o que não deixa de aludir às publicidades de artefatos tecnológicos dos anos 1990 das quais o artista se apropria, todas elas protagonizadas por crianças. Assim, um móbile produzido com lâmpadas e discos rígidos de diferentes tamanhos ganha o espaço da galeria e tem seus sons amplificados por meio de um sistema de áudio acoplado ao objeto. Próximo à janela, outra aparelhagem capta as vibrações da rua por meio de um microfone instalado no vidro e as amplifica, contribuindo para a paisagem sonora gerada pelo trabalho.


No projeto En la otra cuadra (2012), por sua vez, do coletivo Conversación de Campo (Rosario Carmona, Catalina Matthey, Rosario Montero e Paula Salas), a conexão com os arredores da galeria se dá de outro modo. Partindo da ideia de entrelaçar a produção artística com a investigação antropológica, o trabalho consiste na realização de um mapa colaborativo da vizinhança do espaço. Pessoas que residem, estudam, trabalham ou simplesmente transitam pelo bairro cívico de Santiago são convidadas a retraçar a cidade por meio do desenho ou da palavra, compondo um inventário de recordações, representações e reflexões sobre esse lugar. Trata-se de reinventar essa região, local onde estão concentradas as principais estruturas governamentais do país, como o Palácio de La Moneda, ministérios e outros organismos, a partir das experiências e memórias de quem a vivencia cotidianamente. Distribuído ao público em versão impressa, o mapa inspira uma conversa pública em que se recorre o bairro de acordo com as indicações dos participantes. Mais uma vez, a ideia é redescobrir a vizinhança a partir das impressões e representações subjetivas de cada um, dando lugar a múltiplas vozes e visões sobre essa região da cidade.



Transposición (2012), de Iara Freiberg, também parte da representação de um lugar. Ensaia projetos de intervenção na galeria ou possibilidades de transformá-la por meio do desenho e da invenção. Tomando a forma de planos arquitêtonicos, seus cartazes apontam para uma operação no espaço: a instalação de uma faixa amarela que, tal qual um feixe de luz, passa por sobre ou ultrapassa a galeria, modificando a conformação e a nossa percepção do lugar. Habituada a atuar efetivamente no espaço, seja em locais fechados, seja na cidade, esta é a primeira vez que a artista mantém seus projetos em duas dimensões, propondo diferentes maneiras de intervir em um mesmo local a partir de uma operação semelhante desdobrada em três versões. Trata-se de exercícios de possibilidade que nos convidam a imaginar aquilo que ainda não é, mas que pode vir a ser.



Convite semelhante é proposto pelo poema de Jorge Bucksdricker. Se para a ciência a menor distância entre dois pontos pode ser tanto uma reta quanto uma curva, dependendo das qualidades do espaço-tempo onde o trajeto é medido, para a poesia o que importa é o modo como nos aproximamos do ponto distante. Daí que o caminho entre dois pontos sempre poderá ser abreviado pela maneira como o percebemos ou reinvetamos. Pelos exercícios de possibilidade a que nos dispomos ou pelo modo como empunhamos uma lupa.



Por fim, o trabalho de Soledad Pinto também desafia a nossa percepção. Modelos para abrir un pasaje (2012) revela ao mesmo tempo em que obstrui uma passagem conectando o subsolo da galeria ao Ministério da Educação. Por meio de um macaco hidráulico, uma série de livros é pressionada de modo a intersectar a chamada «porta do ministro». Trata-se de obras que têm como tema relatos, manifestos e propostas de projetos utópicos. Conteúdos que não deixam de apontar para a fragilidade da estrutura que compõem ou para a sensação – de resto verdadeira – de que ela pode ceder a qualquer instante. O universo do saber também é sondado por outro trabalho de Soledad que compõe a série Modelos para abrir un pasaje. Ao lado da abertura que conduz à «porta do ministro», um anúncio anônimo solicita ajuda para iniciar um programa de estudos em filosofia. Aqui, a passagem a ser aberta pelos livros adquire um tom metafórico, ainda que fragilidade e utopia também pareçam estar presentes no intento em questão.



A exposição nos fala, assim, de tentativas de transformar aquilo que está dado. Não do modo ideal, mas de acordo com as condições existentes e engendradas a cada situação. Gestos simples potencializam possibilidades, gerando composições quase sempre híbridas e inesperadas que, com humor e delicadeza, nos recordam que não podemos habitar o mundo a não ser como poetas.

* Texto de apresentação da exposição Exercícios de possibilidade, realizada na Galería Gabriela Mistral, em Santiago do Chile, entre entre 28 de novembro de 2012 e 15 de janeiro de 2013.

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