As cidades e o emaranhado


Embora habitem terras tão distantes quanto areia e papel, as cidades de Pedro Varela são como desdobramentos de uma só. Atrevo-me a chamá-la Varela, em referência aos lugares narrados por Marco Polo ao conquistador mongol Kublai Khan em As cidades invisíveis, de Italo Calvino.

Se visitada pelo viajante veneziano, Varela chamaria a atenção por suas distintas conformações. O desenho das ruas, a arquitetura das casas, a invenção dos edifícios, a matéria das coisas, as cores, as montanhas, os jardins são outros a cada investida. É como se a cidade brotasse diferente sempre que intuíssemos conquistá-la. E com viço de erva daninha em paisagem tropical, crescesse e transbordasse em outras.

Pra dentro e pra fora.

Varela é daquelas cidades que comporta muitas versões de si mesma. Ensaios ou esboços de um projeto que nunca chega a se concluir. Como Tecla, que se constrói continuamente à imagem do céu, ou Valdrada, que se reflete igualzinha no lago, ainda que assimétrica, Varela é todos os seus espelhos e desdobramentos.

Lugar sem bordas feito de bordas.

Varela não possui habitantes – e esse talvez seja seu maior mistério. Varela é viva em si. Em suas formas e em seus vazios. Naquilo que é e naquilo que pode ser. Varela é viva nas suas minúcias, na sua delicadeza. Nas suas histórias, nos seus caminhos, na sua vertigem. No modo como se faz e refaz constantemente. Na sua suspensão, na sua suspeição.

Varela é viva no olhar.

Nas linhas que reinventam a cidade vista do mar pela janela da barca. Nas dobras. Nos recortes que fazem entrever paisagens. Nos traços e colagens que conformam becos, vielas, pontes, palácios, telhados, janelas, praças, estradas... Na areia que se compacta.

Varela não foi conquistada por Kublai Khan, nem descrita por Marco Polo. Mas como Zora, Marósia, Tecla, Irene, Fílide ou Valdrada, alguns dos lugares narrados pelo viajante, mostra-se cidade para falar de cidades. Das coisas que as povoam e são por elas povoadas. Desse emaranhado que é ver e compartilhar vazios e paisagens.

* Texto publicado no folder da individual de Pedro Varela no Paço das Artes, em São Paulo, como parte da Temporada de Projetos 2010. A exposição aconteceu de 12 de julho a 29 de agosto de 2010.
** Rioniterói, desenho-performance em uma barca, 2005.

Um comentário:

Larissa disse...

Amora, que bonito. Fiquei com vontade de conhecer Varela e reler Calvino. E mais textos dessa versão soltinha de Feris Albuquerque. Besos