O museu como lugar de reflexão


Curadora do Museu de Arte Contemporânea da USP, Cristina Freire é responsável pelo resgate de um capítulo importante da história recente da arte brasileira: a atuação do MAC USP nos anos 1970 e as experiências conceituais abrigadas pela instituição. Seus estudos, que resultaram no livro Poéticas do Processo, fornecem reflexões para se pensar as relações entre o museu e a produção artística de hoje

O MAC teve um papel importante nos anos 1970 ao abrir espaço para a experimentação e para a participação de artistas. Como isso aconteceu?
Nas décadas de 60 e 70, os museus foram muito questionados por serem espaços de legitimação e poder. Os estudantes pichavam no Louvre “abaixo o museu”. Essas eram as palavras de ordem. No entanto, algumas instituições funcionaram como território de liberdade. É o caso do MAC, na época dirigido pelo professor Walter Zanini, que estava ligado à vanguarda do pensamento museológico. Lá os artistas eram convidados a criar e a participar livremente. Eles mesmos organizavam as mostras, que eram feitas quase sem dinheiro. É nessa época que se desenvolve a arte postal. Artistas dos mais variados lugares do mundo trocavam trabalhos entre si. E o MAC funcionava como um ponto importante dentro dessa rede, organizando mostras dos materiais que recebia: cartões postais, registros de performance, anotações, projetos de instalação etc. São esses trabalhos que hoje formam a coleção de arte conceitual do museu.

Essa coleção permaneceu esquecida por muito tempo pelo museu. Por quê?
Porque ainda hoje essas obras são vistas com estranheza. Não só pelo grande público, mas pelos próprios profissionais do museu. São trabalhos que, à primeira vista, não são identificados como obras, porque não se encaixam nas categorias tradicionais: pintura, escultura etc. Por isso muita gente tem dificuldade de aceitar essa produção como algo digno de fazer parte do acervo de um museu. Acontece que, se esses trabalhos não forem preservados, vamos apagar um momento importantíssimo da história da arte contemporânea. Foi essa a preocupação que me motivou a estudar esse acervo.

Qual a importância desses trabalhos para a história da arte contemporânea?
A principal questão é que eles apontam para uma virada no conceito de obra de arte, que começa a ser visto como algo em processo, que não necessariamente resulta num objeto final, acabado. É nesse momento que estão as chaves para se entender muitos aspectos da produção contemporânea, sobretudo daquela de orientação con­ceitualista. Questões como a transitoriedade, a repro­dutibilidade e a imaterialidade da obra já estavam colo­cadas ali.

A dificuldade do MAC em assimilar as propostas conceituais da década de 70 revela um descompasso do museu em relação à produção de seu tempo. O problema também é enfrentado por outras instituições brasileiras?
De maneira geral, os museus de arte no Brasil ainda operam de forma bem convencional, com dificuldade de assimilar a produção atual. Mas essa defasagem não acontece só no Brasil. O MoMA, de Nova York, ainda não conseguiu assimilar grande parte da sua coleção de livros de artista. Até hoje, ela foi muito pouco exibida. O fato é que o museu não caminha na mesma velocidade da produção artística. Trabalha com critérios e categorias que remontam ao século 19. No caso brasileiro, tem ainda outra questão: não dá para esquecer que os museus de arte foram criados depois da segunda guerra mundial, sob a influência do MoMA, e com uma bandeira ideológica muito forte de afirmação do status quo. Essa é uma postura que tem de ser revista. O museu não pode ser um espaço de afirmação. Tem de ser um lugar de crítica, dúvida, reflexão.

Muitas das obras que compõem a coleção de arte conceitual do MAC são documentos ou registros de trabalhos. Como diferenciar aquilo que é mera documentação de uma proposta artística daquilo que pode ser entendido como obra de arte?
No caso do acervo do MAC, todos os trabalhos que compõem a coleção de arte conceitual foram expostos alguma vez. Os artistas os enviavam para serem exibidos, e eles foram de fato apresentados pela instituição. Isso significa que, em um dado momento, houve um certo consenso de que aquelas peças se sustentavam como obras de arte. Para usar um conceito do Walter Benjamim, foi agregado a elas o “valor de exibição”.

É possível se aproximar da experiência que uma obra proporciona a partir de seu registro?
São aproximações totalmente diferentes. Uma é a experiência, que está ligada a um tempo e espaço específicos, e não pode ser repetida. Outra é o registro, que pode dar uma idéia do que foi a experiência direta com o trabalho, mas nunca reeditá-lo. Agora, existe a possibilidade de se reconstruir uma instalação a partir do projeto, por exemplo. Esse é um procedimento bastante utilizado hoje, já que muitos trabalhos não têm como ser armazenados pelo museu.

Em Poéticas do Processo, você afirma que tão importante quanto exibir obras contemporâneas é oferecer recursos para que as pessoas possam se relacionar com elas. Esse é outro desafio do museu?
Não só do museu, mas de todos aqueles que trabalham no circuito artístico ou estão, de alguma maneira, vinculados à disseminação da arte: escolas, jornais, revistas, televisão etc. Existe todo um código que precisa ser trabalhado. Arte contemporânea não é fácil. Não é algo que o público vê e gosta. Principalmente em função da idéia que as pessoas trazem sobre o que é uma obra de arte. São concepções que vêm do Renascimento. Quando alguém se depara com a série de telegramas I’m Still Alive, do On Kawara, por exemplo, precisa saber de todo o universo filosófico desse artista para conseguir entender aquilo como um trabalho de arte. A primeira relação com a obra não é mais estética, não tem mais a ver com a percepção visual. Sobretudo na produção de orientação conceitualista, ela é primordialmente intelectual. Você não olha e gosta. Você entende e gosta.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 64, em maio de 2005, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
** Confirmado: é arte, cartão postal de Paulo Bruscky, 1977.

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