Por uma arte política


As novidades são grandes, e a expectativa também. Dedicada ao tema “como viver junto”, a Bienal de São Paulo chega à 27ª edição, trazendo uma série de reformulações em seu modelo curatorial. A começar pela escolha da curadora. Eleita por meio de um processo inédito na história da instituição, baseado na solicitação de anteprojetos a quatro profissionais, Lisette Lagnado pôs fim às representações nacionais, criou um programa de residências que trouxe dez artistas estrangeiros para trabalhar no Brasil e incorporou ao projeto uma série de seminários preparatórios que antecipam o debate sobre a exposição. “Enquanto normalmente a Bienal se guarda como uma esfinge, como um enigma, até a inauguração da mostra, os seminários criam uma transparência: vamos falar deste artista ou daquele outro, de arquitetura e reconstrução, de comunidades e mutirões. Tudo aos poucos vai se revelando ao público”, explica Lagnado, que assina a curadoria ao lado de cinco co-curadores: Adriano Pedrosa, Cristina Freire, José Roca, Rosa Martinez e Jochen Volz.

O evento propõe uma reflexão sobre a construção de espaços compartilhados, práticas colaborativas e projetos coletivos. A proposta é investigar as possibilidades de coexistência e convivência no mundo contemporâneo. Com 119 artistas provenientes de cerca de 55 países, entre nomes consagrados e expoentes da nova geração, a 27ª Bienal de São Paulo aposta em um projeto de marcado viés político e recoloca em pauta o debate sobre o lugar e o papel da arte na sociedade. Na entrevista a seguir, Lisette Lagnado fala sobre as idéias que guiaram a concepção da mostra, comenta as mudanças implementadas e explica por que acredita na arte enquanto propositora de mudanças na vida social.

O processo de escolha do curador-geral da 27ª Bienal de São Paulo contou com um procedimento inédito na história da instituição, baseado na solicitação de anteprojetos a quatro profissionais. Qual o impacto da novidade na concepção e organização da mostra?
O impacto é enorme e maravilhoso. Nunca houve tamanha respeitabilidade pública para o trabalho de um curador, sua função de exercer a crítica e de cumprir um projeto conceitual. Sou uma mulher de sorte.

Uma das novidades desta edição é a abolição das representações nacionais, o que oferece uma independência maior à equipe curatorial no desenvolvimento do projeto. Como tem sido a primeira experiência com esse formato? Os países seguem oferecendo apoio financeiro aos artistas participantes?
É de fato uma experiência-piloto e já está sendo reconhecida como medida necessária para o desenvolvimento de um projeto livre das interferências externas, como podemos atestar no anúncio feito pela próxima edição da Bienal do Mercosul, que inclusive adotará um programa de residências artísticas também. Quero deixar claro que mantivemos o diálogo com todos os Institutos e as Fundações de Cultura que costumavam apoiar artistas para a Bienal de São Paulo e conseguimos apoios consideráveis e uma compreensão generosa do significado da palavra “nacionalidade”. A Alemanha e a Holanda, por exemplo, estão prestigiando artistas que residem em seus países, mesmo tendo origens diversas: espanholas, argentinas, do Benin, etc. Mas fomos propositores do começo ao fim. A Bienal de São Paulo deixou de ser um guichê.

Como a equipe de co-curadores vem atuando no desenvolvimento e execução do projeto?
Trabalhar sozinho é muito chato. Considero meus co-curadores verdadeiros aliados, que me trouxeram sua experiência profissional na escolha dos nomes, que me orientaram na conduta de casos mais delicados, que afinaram detalhes do conceito junto comigo e foram decisivos no programa de seminários e, sobretudo, na concepção das publicações.

O tema da 27ª Bienal "como viver junto" tem duas inspirações importantes: as reflexões de Roland Barthes e o pensamento desenvolvido por Hélio Oiticica por meio de sua obra. Como as idéias e conceitos trazidos por esses nomes conversam com o tema da exposição?
A questão é vasta. Primeiro, é preciso deixar claro que são dois autores de alma muito distinta. Barthes, delicado. E Oiticica, anarquista. Como combinar isto?, você me perguntaria. Na realidade, é muito mais o Programa Ambiental de Hélio Oiticica, a partir de seus projetos construtivos que caminharam para o Parangolé – que ele dizia ser um “programa para a vida” –, que norteou a concepção do projeto. O título veio a posteriori. Eu havia lido os seminários de Barthes e encontrei uma maneira de confrontar a atualidade de um pensamento de natureza utópica no mundo globalizado.

Quando você fala na possibilidade de confrontar a atualidade de um pensamento de natureza utópica no mundo atual, você está falando em investigar a possibilidade de se investir em algum tipo de "espírito utópico" nos dias de hoje, especialmente por meio da arte?
Sim, alguns artistas ainda trabalham na direção de uma utopia, de uma sensibilidade partilhada, conjunta. Outros, entretanto, já não acreditam mais que este projeto seja possível. Acham que os conflitos são intransponíveis.

Você pode falar um pouco mais sobre o Programa Ambiental de Hélio Oiticica e sobre como ele norteou a concepção do projeto?
A noção de Programa Ambiental remonta ao início dos anos 1960, quando Hélio Oiticica concebeu o projeto "Cães de Caça", maquete que nunca foi construída e que previa concertos de música ao ar livre. Mas é com o Parangolé que o artista se dá conta de que a participação do público é inevitável e de que ele teria de fazer seus projetos fora da instituição artística – museus ou galerias. Entre 1964 e 1969, Hélio escreve muitos textos que vão afinando este conceito. Nos anos 1970, já morando em Nova York, o "ambiental" era uma dimensão que muitos artistas estavam explorando em níveis diferentes, como Ana Mendieta, por exemplo, que também foi convidada para a 27ª Bienal. O projeto proposto para esta Bienal de São Paulo procura registrar uma tendência de incluir o espectador na obra. O que Oiticica chamava de "artista construtor" é um sinal recorrente: a vontade de transformar a percepção estética e sensorial que o não-artista tem diante de uma obra. Isto se dá por meio de um tipo de participação, seja ela direta ou indireta.

Embora tenha inspirado a concepção da mostra, você optou por não expor trabalhos de Hélio Oiticica. O artista figurará na exposição apenas por meio de filmes e de textos de sua autoria, publicados em um dos livros da Bienal. Por que essa opção?
Esta opção provêm do fato de que me parecia que a obra de Oiticica já havia sido suficientemente mostrada em Bienais mas que, entretanto, sua teoria inventiva, dos anos 1970 notadamente, não havia nunca recebido o devido respeito da crítica. “Como pensar junto com Hélio?” é uma pergunta em aberto.

O tema "como viver junto" e a seleção de nomes desta 27ª edição - que traz um bom número de artistas e projetos artísticos coletivos com trabalhos de evidente caráter social e político - apontam para uma mostra de viés político. Por que essa escolha?
Para mim, a escolha não poderia ser diferente. Eu queria ter sido antropóloga quando cheguei no Brasil, e o primeiro artista de Bienal que eu conheci fazia “arte sociológica”. Acompanhei pintores importantes, como Iberê Camargo, mas o compromisso direto do artista na vida social me interessa muito mais. Talvez porque eu queira, no fundo, que este mundo melhore... E ele não melhora! A guerra do Líbano estourou no meio da Bienal!

É exatamente este o ponto que você mais criticou em relação à 26ª Bienal, de curadoria de Alfons Hug: o descompasso em relação ao debate artístico internacional, pautado no tratamento político da arte. Foi esse debate que você buscou trazer para a 27ª edição?
Hug cumpriu um papel importante, convidou artistas que pouca gente realmente viu. O problema é a escala gigantesca da Bienal. Eu tive a sorte de poder propor um projeto. E os seminários ressaltaram que, para mim, não há compreensão dos fenômenos estéticos sem debate, sem uma certa discursividade em torno das práticas artísticas.

No anteprojeto apresentado à Fundação Bienal, o Acre figurava como um dos "blocos" temáticos da exposição. Como o Acre entrará, de fato, na mostra e por que a escolha desse Estado como um dos eixos temáticos da 27ª Bienal?
Os tais “blocos” foram dissolvidos nas discussões curatoriais e o título “como viver junto” veio para nos ensinar questões relativas a cohabitação, fronteiras, vizinhanças, escolhas sexuais, políticas; diferenças entre asilo e exílio; noções de pátria, de imigração e trabalho. A história da anexação do Acre ao Brasil sintetiza tudo isto. É o Estado mais politizado que eu visitei. O Acre recebeu três artistas residentes de países muito diferentes, e um artista que foi por conta própria, movido pela curiosidade. Além de reconhecermos Hélio Melo como pintor dos mitos da floresta, creio que a 27ª Bienal deixou sementes de contemporaneidade em Rio Branco, por meio de workshops que vão estimular os artistas locais.

Outra novidade desta edição é a realização de seminários "preparatórios" em torno do tema geral da mostra. Qual era a proposta desses eventos e que papel eles têm tido?
A ressonância destes seminários “preparatórios” é maior do que eu esperava. Enquanto normalmente a Bienal se guarda como uma esfinge, como um enigma, até a inauguração da mostra, os seminários criam uma transparência: vamos falar deste artista ou daquele outro, de arquitetura e reconstrução, de comunidades e mutirões. Tudo aos poucos vai se revelando ao público. Uma Bienal, como já disse, é um evento gigantesco. E não há como apreendê-lo de uma vez só. Outro dado importante para mim era não somente romper essa barreira temporal, mas também explicitar que o artista pensa, tem estratégias discursivas, estabelece trocas com professores de várias disciplinas.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 78, em setembro de 2006.
** Cartaz da série Gráfica social, de Minerva Cuevas, disponível na rede para uso público.

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