“O trabalho coletivo desafia o artista”


Mario Ramiro já montou grupo de intervenção urbana, espaço cultural e até banda de electro-punk. Artista multimídia e professor da USP, ele afirma que o trabalho coletivo em arte exige muito desprendimento e disposição.

Sua primeira experiência de trabalho colaborativo foi com o grupo 3NÓS3, ao lado de Rafael França e Hudinilson Jr.. Você pode falar um pouco sobre ela?
No final dos anos 1970 e começo dos 1980, existia uma movimentação em direção às ruas muito grande. Era o período de transição da ditadura para a democracia, e os movimentos sociais tomavam conta das cidades. É nesse contexto que o 3NÓS3 começou a atuar, desenvolvendo projetos de intervenção urbana nas ruas de São Paulo. Junto com ele, surgiram outros grupos, que também faziam atividades nas ruas, sempre com uma idéia de atuar fora do circuito comercial e institucional e investir numa experimentação de linguagem. O interessante é que, como a maioria desses grupos era formada por estudantes da ECA, todo mundo se conhecia, e a gente acabava trabalhando em colaboração uns com os outros. Chegamos a criar uma espécie de cooperativa de coletivos, que se chamou CLE, Centro de Livre Expressão. Ali, você percebia um traço que reaparece com força nos dias de hoje, que é esse trabalho coletivo de coletivos. Muitas das nossas intervenções, principalmente aquelas de grande porte, eram executadas com a ajuda de outros grupos.

Um traço marcante do grupo é que vocês sempre comunicavam à imprensa a realização das intervenções. Por quê?
Primeiro, porque a imprensa funcionava como um meio de proteção contra a polícia. A presença de jornalistas, principalmente de câmaras de tevê, inibia bastante qualquer eventual repressão policial. O outro motivo era a divulgação das intervenções, que normalmente aconteciam de madrugada e sempre eram retiradas no máximo até a hora do almoço. Ou seja: a maioria das pessoas não via aqueles trabalhos instalados na cidade. O terceiro motivo é que a gente via na imprensa uma forma de documentar os trabalhos a um custo muito baixo. A gente recortava as matérias e com elas fazia umas pequenas publicações, que funcionavam como catálogos do grupo.

Além de atuar no 3NÓS3, você trabalhou em parceria com outros artistas mais vezes ao longo da sua trajetória. Você pode falar um pouco sobre essas experiências?
Quando o 3NÓS3 acabou, em 1982, trabalhei com o Eduardo Kac por um tempo, criando projetos de telecomunicação. Nessa época, as experiências com arte e tecnologia estavam recém começando no país. Minha terceira expe­riência foi com um grupo de músicos, antes de eu ir para a Alemanha. A gente fazia trilhas sonoras para filmes inexistentes. A idéia era que um dia elas pudessem ser integradas a uma peça ou filme. Já na Alemanha, veio o Autopsi, que nunca criou trabalhos em conjunto, apesar de ter tido projetos nesse sentido. O que a gente fazia era organizar mostras coletivas. Atualmente, a distância tem dificultado o trabalho em parceria, mas a gente segue com o grupo. Hoje, faço parte de uma banda de electro-punk, que tem trabalhando muito com questões da cidade. Nossas músicas são feitas a partir desses papéis que as pes­soas te entregam na rua: anúncio do pai nhonhô, cartão de motorista de táxi, adesivo de garota de programa etc. A gente pega esses despachos da rua e dá voz a uma linguagem que normalmente é identificada como lixo.

O que o trabalho coletivo traz de particular?
Ele exige uma disposição e um desprendimento muito grande. Toda vez que você lança uma idéia no grupo, ela deixa de ser sua e passa a ser de todos. Ela sempre vai sofrer adaptações. É aí que você tem de saber trabalhar com a sua vaidade e desenvolver um espírito mais coletivo. Você precisa estar aberto a compartilhar as suas idéias e a sua visão sobre a arte. E tem de aceitar que o seu ponto de vista seja questionado o tempo inteiro. O trabalho coletivo desafia o artista. Testa os seus limites. Mas sempre vai alimentar a sua produção.

Há sempre uma negociação envolvida, não?
Sempre. A palavra negócio significa exatamente a negação do ócio. Por isso o termo se aplica perfeitamente ao momento de execução do trabalho. Ainda mais quando ele se dá de forma colaborativa. Agora, tem uma parte ante­rior a isso, que é o ócio coletivo. Normalmente os grupos nascem de eleições pessoais, ou seja, de afinidades com pessoas com as quais você divide o ócio. Então existe uma negociação que acontece no momento da criação, mas existe também o momento do devaneio, do ócio compartilhado, que é imprescindível a esse tipo de trabalho.

Outro projeto coletivo que você desenvolveu foi a criação da Oficina Virgílio, hoje Oficina Mirante.
A diferença é que nesse caso a gente não forma um grupo de criação, mas um grupo de trabalho envolvido com um projeto cultural. A iniciativa partiu de três artistas, eu, Marco Giannotti e José Spaniol, junto com uma produtora, a Ana Helena Curti. O projeto inicial era montar um ateliê-escola, um espaço que oferecesse um formato de ensino diferente do modelo acadêmico. Algo um pouco inspirado no que foi a Bauhaus ou a atividade educacional dos russos no começo do século passado. Só que, além das oficinas, cada vez mais o espaço está agregando outras atividades: palestras, mostras de vídeos, encontros com artistas, apresentação de músicos. Temos também um projeto de criar uma editora de livros de artista.

Esse investimento em iniciativas que fogem à produção individual de obras, como a formação de coletivos, criação de espaços, agenciamento de mostras etc, é um dado do artista contemporâneo?
Não dá para generalizar, mas esse é um elemento que vem aparecendo bastante na atividade de muitos artistas. Todos esses projetos que eu mencionei, por exemplo, não são nada originais. Tem muita gente fazendo exatamente a mesma coisa. Existe, sim, por parte dos artistas, um interesse em participar cada vez mais da dinâmica cultural. E não há dúvidas de que o nosso campo de atividade já se expandiu. Hoje você vê artista fazendo pesquisa na universidade, dirigindo espaços, desenvolvendo projetos culturais, fazendo curadorias. Existe uma demanda para esse tipo de atua­ção. Tudo isso é muito positivo. Eu e o José Spaniol costumamos dizer que o artista tem uma “pegada” diferente do crítico, do historiador da arte, do curador. Ele pesquisa, administra, analisa as mesmas questões, mas de um ponto de vista de quem também produz.

O que vem impulsionando esse tipo de atuação?
Por um lado, acredito que isso tem a ver com a formação dos artistas. Na minha geração e na geração que vem vindo aí, a maioria tem formação universitária. Mesmo aqueles que não têm intenção de seguir carreira acadêmica, estão procurando a universidade para se aprimorar. Essa experiência talvez revele aos artistas potencialidades que eles desconheciam, como o talento para a escrita e a pesquisa, por exemplo. Ou o talento para a elaboração de projetos, para a atividade em grupo etc. Por outro lado, tem artistas que não estão envolvidos com a universidade, mas têm uma vontade muito grande de interferir no processo sociocultural brasileiro. É o caso de muitos coletivos que trabalham com ONGs e comunidades de periferia. O artista começa a descobrir a extensão e a força que a sua atividade pode ter. Começa a perceber que a arte também pode ser transformadora. E que talvez seja possível contribuir, por meio dela, para uma pequena mudança de mentalidade ou de percepção sobre as coisas. Principalmente no Brasil, é impressionante a disposição que os artistas têm tido de interferir no processo cultural. Isso é muito bacana, porque rompe com aquele estigma do artista de ser uma espécie de vadio chique, elegante.

* Entrevista originalmente publicada na revista Aplauso, n. 67, em agosto de 2005, como parte da série Por dentro da arte contemporânea.
* Intervenção realizada pelo grupo 3NÓS na Av. Paulista, em São Paulo, em 1979.

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